31.1.08

EX-GOVERNANTE CONDENADO A 27 ANOS DE CADEIA
TUI censura “carácter predatório”
de Ao Man Long, “o insaciável”


O Tribunal de Última Instância considerou provados 57 dos 76 crimes de que estava acusado Ao Man Long. Aos 51 anos de idade, o ex-governante foi condenado a passar os próximos 27 anos atrás das grades

O Tribunal de Última Instância de Macau condenou ontem o ex-governante Ao Man Long a uma pena em cúmulo jurídico de 27 anos de cadeia por crimes de corrupção, branqueamento de capitais, abuso de poder e riqueza injustificada.
O antigo secretário para as Obras Públicas do Governo de Macau foi ainda condenado a uma multa de 240 mil patacas ou, em alternativa, a seis meses de prisão.
Os 27 anos que Ao Man Long irá cumprir correspondem ao cúmulo jurídico das diversas penas que lhe foram aplicadas pelos crimes que o Tribunal considerou provados - 20 crimes de corrupção passiva para acto ilícito, 20 crimes de corrupção passiva para acto lícito, 13 crimes de branqueamento de capitais, dois de abuso de poder, um de inexactidão de declaração de rendimentos e um de riqueza injustificada.
Durante a leitura da sentença, o Tribunal declarou também perdidos a favor do território cerca de 253 milhões de patacas em dinheiro, fundos de investimento e outros bens já na sua posse ou que iriam ser entregues caso o arguido não fosse detido, que considerou terem sido obtidos através da conduta ilegal de Ao Man Long.
Entre os bens apreendidos, conta-se uma residência em Londres que terá custado cerca de cinco milhões de libras (cerca de 75 milhões de patacas). Os bens ilícitos que não forem recuperados terão de ser pagos através dos bens legais que o antigo governante tenha na sua posse.
A determinação da medida da pena foi marcada, segundo o juiz Sam Hou Fai, presidente do colectivo, pela "conduta chocante" de Ao Man Long que ocupava um alto cargo na Administração e pelos "elevados valores" envolvidos no esquema de corrupção.
Tal conduta, sublinhou o juiz, teve como consequência uma imagem "fortemente negativa" de Macau e é reveladora do carácter "predatório" de Ao Man Long, que classificou de "insaciável". O TUI censurou também o ex-governante por não ter revelado arrependimento e por ter prejudicado a imagem dos titulares de cargos públicos da RAEM.
O acórdão vincou ainda a gravidade do crime de corrupção, recorrendo a uma citação da jurista portuguesa Cláudia Santos: “Por estar frequentemente no exacto ponto de encontro entre o crime organizado e o crime de colarinho branco, (a corrupção) fragiliza sobremaneira a própria autoridade estadual, põe em causa a administração da justiça porque questiona o seu exercício relativamente àqueles cujo comportamento deveria ser o mais impoluto, mina as estruturas das instituições e das democracias”.
Ao Man Long, que era secretário dos Transportes e Obras Públicas no Governo de Macau desde a transferência de poderes de Portugal para a China em Dezembro de 1999, foi detido a 6 de Dezembro de 2006, pelo Comissariado Contra a Corrupção, que terá encontrado na posse do antigo governante dinheiro e bens avaliados em cerca de 800 milhões de patacas.
O antigo membro do Governo, que tinha sido reconduzido no cargo em 2004, terá cometido os crimes entre 2002 e 2006, e foi julgado no Tribunal de Última Instância, o tribunal competente para julgar casos que envolvam titulares de cargos políticos.


*****


TUI “AGRADECEU” COLABORAÇÃO DO ARGUIDO
Cargo era uma “máquina de fazer dinheiro”

Durante mais de duas horas, Ao Man Long ouviu de pé, imóvel, e sem esboçar reacção, todos os argumentos reunidos pelo Tribunal de Última Instância para o condenarem.
O TUI disse não ter dúvidas de que as “empresas fantasma” por onde se fazia a movimentação do dinheiro dos subornos eram controladas pelo arguido, e disse ter sido possível traçar o percurso seguido, “por vezes sinuoso”, para levar esses montantes até contas bancárias em Hong Kong ou no Reino Unido.
O tribunal disse também ter ficado provado que Ao Man Long viciava os concursos de obras públicas, fazendo as adjudicações “independentemente do mérito” das propostas apresentadas pelos concorrentes e revelando, desse modo, “desprezo pelo interesse público”.
Ao concluir o elenco das provas que foram determinantes para a formação da convicção do tribunal, o colectivo sublinhou ter contado com a “ajuda preciosa, embora involuntária” do arguido, que anotou todos e cada um dos subornos nos já famosos “cadernos de amizade” – as suas agendas pessoais.
Quanto às teses apresentadas pela defesa do arguido, o TUI rejeitou-as praticamente todas. Os testemunhos dos agentes do CCAC não foram considerados depoimentos indirectos, antes foram classificados como auxílio na análise de documentos, que a lei não proíbe. O mesmo se diga da utilização do power point. A lei não prevê, mas nada obsta à sua utilização tanto mais que ao arguido foi sempre facultado o direito do contraditório. O direito penal rege-se pelo princípio da verdade material, lembrou o TUI, e toda a parafernália tecnológica usada pelo CCAC limitou-se a servir esse fim.
O TUI rejeitou também a tese de que Ao Man Long não estava obrigado ao dever de imparcialidade, afirmando ter sido feita uma “lamentável confusão” entre esse conceito e o da discricionariedade. E entendeu ainda que não se estava perante um crime continuado, por ter sido o arguido a planear toda a actividade criminosa e por não se ter verificado qualquer diminuição da culpa ao longo dos anos. Ao contrário, diz o TUI, “o que avulta é antes um dolo particularmente intenso, tendo transformado as suas funções governativas numa máquina de fazer dinheiro, em proveito próprio e em prejuízo do interesse público”.
Ouvida a decisão, que o condena a passar 27 anos na cadeia, Ao Man Long abandonou a sala de audiências de olhos no chão, sem exteriorizar o que lhe ia na alma.


*****


ADVOGADO DE AO MAN LONG
“Não há memória de uma pena assim”

O advogado do antigo secretário para as Obras Públicas e Transportes, Nuno Simões, considerou “muito severa” a pena ontem anunciada pelo Tribunal de Última Instância. “Não há memória de uma pena assim”, afirmou à saída do tribunal, embora se escusasse a criticar o colectivo de magistrados que julgou o caso. “A partir do momento em que deram como provados crimes que consideraram muito graves, e atendendo às penas que atribuíram a cada um dos crimes, não se pode criticar a decisão”, disse.
Mas Nuno Simões afirmou também não ter desistido de lutar por uma pena mais favorável ao seu cliente. Hoje mesmo o advogado vai visitar Ao Man Long na prisão, para decidir se apresenta ou não um recurso, apesar de em despacho anterior do juiz Viriato Lima ter ficado o aviso de que o recurso não seria admitido, por não haver tribunal com competência para reapreciar as decisões do Tribunal de Última Instância.
“A impossibilidade de recorrer viola a Lei Básica e viola o Pacto dos Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas, de que Macau é signatário”, reafirmou Nuno Simões à saída da audiência. “Todas as pessoas condenadas por um crime têm o direito de recorrer dessa decisão. Se isso não está previsto neste caso, o problema não é nosso”.
Quando questionado sobre se Ao Man Long está a “servir de exemplo” ou se não passa até de “um bode expiatório”, o advogado do ex-secretário disse serem questões que prefere não comentar. Já quanto ao facto da confissão ou arrependimento de Ao Man Long poderem ter originado uma pena mais leve, caso se tivessem verificado, disse que a própria maneira como estava estruturada a acusação inviabilizou uma atitude desse tipo. “Como podia confessar alguns factos se não eram verdadeiros ou se constituíam um manifesto exagero face ao que se passou?”, atirou como resposta. “Ele estava muito limitado pela pronúncia”.
Nuno Simões disse ainda estar “satisfeito” com o seu trabalho, mas “insatisfeito com a decisão”, cuja severidade não se cansou de sublinhar. “A pena mais pesada que me lembro de ter sido aplicada nos tribunais de Macau foi a um cidadão japonês que matou duas mulheres no hotel Lisboa – e, salvo erro, foi de 21 anos de prisão”, disse ao PONTO FINAL.
Outras fontes ligadas ao sistema judiciário contactadas por este jornal recordam, porém, um caso recente, datado de 2005, em que foi aplicada uma pena mais severa do que a anunciada ontem. Um homem foi acusado de matar a mulher e lançar fogo ao edifício onde morava, na Av. Infante D. Henrique, para ocultar o crime – e foi condenado pelo Tribunal Judicial de Base a 29 anos de prisão. Mas fora do âmbito do crimes de sangue, todos concordam que nunca Macau viu uma tão exemplar punição.


*****


Os efeitos sobre os processos conexos

O acórdão ontem divulgado pelo Tribunal de Última Instância deverá ter um importante impacto no julgamento que está a decorrer no Tribunal Judicial de Base, envolvendo familiares de Ao Man Long e empresários acusados de o subornarem – afirmaram ao PONTO FINAL fontes ligadas ao processo. Muito dificilmente, acrescentam, fará o TJB uma apreciação da prova diferente da realizada pelo TUI, devendo também tender a uma mesma interpretação do direito.
O TUI deu como provados 40 dos 41 crimes de corrupção de que Ao Man Long estava acusado, classificando metade deles como “próprios” por visarem a prática de acto ilícito (pena máxima prevista de 8 anos), e os restantes como “impróprios”, por se reportarem a actos lícitos ou por não ter sido provada a ilegalidade dos actos (pena máxima de 2 anos). Só os primeiros podem ser crimes antecedentes de branqueamento de capitais, o que explica que Ao Man Long tenha também sido absolvido de quase duas dezenas de crimes de branqueamento.
O único crime de corrupção não provado estava relacionado com a ETAR de Macau. O tribunal entendeu que as acções de uma empresa prometidas ao ex-secretário como recompensa pela adjudicação de um contrato, não eram mais do que o pagamento pela prática de um outro crime que já constava da pronúncia. Resultado: caiu um crime de corrupção, e caiu também um crime de participação económica em negócio para que Ao Man Long não fosse condenado duas vezes pelos mesmos factos.
A convolação dos crimes de corrupção de próprios em impróprios significa, simultaneamente, a aplicação de uma pena mais leve e a impossibilidade de suportarem a prática de branqueamento de capitais, pois exige-se aqui que o crime antecedente tenha uma pena máxima superior a 3 anos. Um dos empresários acusados de subornarem Ao Man Long, Chan Tung Sang, da empresa Chon Tit, por pouco não viu o TUI considerar todos os crimes de corrupção em que está envolvido como “impróprios”, o que o deixaria numa situação menos difícil no julgamento em curso no TJB. Segundo o acórdão, não foi provada a prática de actos ilícitos nas três adjudicações à Chon Tit relacionadas com a 3ª Ponte Macau-Taipa, mas terá ficado provada a ilicitude no contrato referente à construção de um auto-silo para veículos pesados na zona do Cotai, assinado com a mesma empresa. Por este crime de corrupção, Chan Tung Sang poderá assim ser também condenado por branqueamento de capitais, caso o Tribunal Judicial de Base siga o entendimento da Última Instância.
As juízas do colectivo do TJB terão também que levar em conta um excerto do acórdão do TUI em que se sugere que os subornos que não chegaram a ser pagos revertam também para os cofres da RAEM, desde que tenha sido dado andamento aos contratos a que se referem. Estão nesta situação cerca de 45 milhões de patacas alegadamente oferecidas por Frederico Nolasco a Ao Man Long pela renovação por 7 anos do contrato de remoção e tratamento dos resíduos sólidos de Macau, bem como uma vivenda e uma loja que o ex-secretário receberia de Tang Kim Man, da empresa Tong Lei, para autorizar dois projectos de obras privadas em Hac-Sá e na Taipa.
O Tribunal de Última Instância lembrou que não podia ordenar já que esses valores revertessem também a favor dos cofres da RAEM, dado que os empresários em causa não foram julgados no mesmo processo, não tendo por isso exercido o direito do contraditório. Mas remeteu essa tomada de decisão para o Tribunal Judicial de Base.


*****


Reacções à sentença do TUI

“A sentença proferida é, sem dúvida, ilustrativa da gravidade dos crimes cometidos por Ao Man Long, nomeadamente corrupção passiva, abuso de poder, branqueamento de capitais e riqueza injustificada, assim como das sanções que devem ser aplicadas.”
Comissariado Contra a Corrupção (CCAC)

“O julgamento foi justo e em conformidade com a lei.”
Edmund Ho, Chefe do Executivo

“Se o Tribunal entendeu que é a pena mais ajustada ao caso, respeito-a. O Tribunal obviamente julgou com objectividade e isenção. É um caso inédito, é uma pena também inédita, mas o Tribunal é soberano. Fica como jurisprudência de Macau.”
Leonel Alves, deputado

“A aplicação de uma pena pesada talvez ajude o Governo a acalmar a revolta da população. Não estou em posição para criticar a decisão do juiz.”
Ng Kuok Cheong, deputado, Associação Novo Macau Democrático

“É uma sentença pesada, nunca antes ouvida em termos de corrupção. Acho que teve em conta o facto de Ao Man Long ser um dos principais membros do Governo, de ter enormes poderes e acumulado enorme fortuna, prejudicando a população de Macau. Está adequada.”
Pereira Coutinho, deputado.


*****


Caso Ao: CCAC diz que ainda há mais

O Comissariado Contra a Corrupção (CCAC) informou ontem que as investigações sobre os crimes em que está alegadamente envolvido o ex-secretário para as Obras Públicas e Transportes – condenado ontem a 27 anos de prisão – estão ainda em curso. E acrescenta que novos processos podem chegar aos tribunais.
“Quando a outros crimes em que Ao Man Long está alegadamente envolvido, as investigações do CCAC correm a bom ritmo, tendo sido já alcançados resultados. Acredita-se que mais tarde haverá mais casos encaminhados para os órgão de justiça”, lê-se no comunicado enviado ontem à imprensa que entendia como justa a decisão do Tribunal de Última Instância e adequada à “gravidade dos crimes cometidos”.

Edições Anteriores

Arquivo

DIRECTOR Paulo Reis REDACÇÃO Isabel Castro, Rui Cid, João Paulo Meneses (Portugal); COLABORADORES Cristina Lobo; Paulo A. Azevedo; Luciana Leitão; Vítor Rebelo DESIGN Inês de Campos Alves PAGINAÇÃO José Figueiredo; Maria Soares FOTOGRAFIA Carmo Correia; Frank Regourd AGÊNCIA Lusa PUBLICIDADE Karen Leong PROPRIEDADE, ADMINISTRAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Praia Grande Edições, Lda IMPRESSÃO Tipografia Welfare, Ltd MORADA Alameda Dr Carlos d'Assumpção 263, edf China Civil Plaza, 7º andar I, Macau TELEFONE 28339566/28338583 FAX 28339563 E-MAIL pontofinalmacau@gmail.com