23.4.08

A pianista Angela Hewitt deu ontem um recital no Centro Cultural de Macau
Projecto de uma vida ao som de Bach

Angela Hewitt apresentou ontem o Cravo Bem Temperado, de Bach, no Centro Cultural de Macau no âmbito da sua tournée mundial. A sala estava quase esgotada e o caso não era para menos já que Hewitt é das poucas pessoas no mundo que interpreta a obra

Marta Curto

Ontem, Angela Hewitt deu o seu primeiro concerto em Macau, apresentando Cravo Bem Temperado, de Bach, num espectáculo de duas horas para uma sala quase esgotada. Para quem não conheça a obra do compositor, este pode ser só mais um evento que teve lugar no Centro Cultural de Macau. Mas a verdade é que a Angela Hewitt é das mais consagradas intérpretes de Bach, mais ainda quando dedicou a sua vida a uma obra tão difícil como o Cravo Bem Temperado.
Composto por dois livros, escritos com 20 anos de diferença, esta obra é considerada a 'bíblia' de qualquer aprendiz na área da música, tendo sido aliás composta para as aulas que Bach dava aos seus púpilos. Não só é considerada muito difícil, por ter um total de 48 prelúdios e fugas, como há muitos que nem se atrevem a interpretá-la. Angela estima que se contem pelos dedos de uma mão. Mas a artista canadiana faz mais: não só interpreta os 48 prelúdios e fugas, como os memorizou. Nos seus espectáculos de duas horas, não usa partituras. Sente-se mais livre assim, e certa de que o público também lhe sente a concentração na ponta dos dedos, sem folhas à frente dos olhos que a distraiam. "Não há nada mais difícil do que isto e esta obra é muito mais complicada de memorizar do que Mozart ou Chopin, porque tem muitas vozes e eu só tenho duas mãos. Consegui memorizar tudo nunca parando, mesmo nos aeroportos visualizava as teclas do piano, lendo as partituras".
Não admira, portanto, que quando lhe perguntam há quanto tempo está a ensaiar, Angela se ria, diga que é a obra de uma vida e que ainda hoje a ensaia diariamente.
O pai de Angela Hewitt era organista na catedral da Igreja de Cristo em Ottawa, no Canadá. Foi ao som de Bach que Angela cresceu. Acabou por seguir os passos paternos, começando a tocar com meros três anos. Aos nove dava o seu primeiro recital, e nunca mais parou.
Em 1994, Angela Hewitt decidiu gravar a totalidade das peças centrais do compositor alemão para a Hyperion Records. A empreitada demorou 11 anos, só terminando em 2005. Um ano depois, a revista Gramophone nomeava-a artista do ano. E em 2007, quando uma sala de espectáculos italiana lhe pediu para interpretar o Cravo Bem Temperado de Bach, Angela Hewitt respondeu que era um trabalho demasiado duro para ser realizado num único evento. Assim começou a ideia de fazer uma tournée mundial com os dois livros de Bach, que começou em Veneza, em Janeiro deste ano, já passou pela Gulbenkian em Lisboa, está agora em Macau e terminará, em Julho, na Alemanha. É a primeira tournée mundial de Hewitt que já foi considerada "a pianista de Bach dos nossos tempos" pelo jornal britânico The Guardian, enquanto a BBC Music Magazine considerou que a sua actuação era de "uma beleza e graça excepcionais".
Mas o maior elogio que já recebeu veio do seu pai. Quando ele a ouviu a tocar Cravo Bem Temperado a idade já o levara à cegueira. Disse-lhe então não fora ela que ouvira, mas Bach nas suas mãos.

Ásia está mais aberta à música clássica

Já tendo interpretado música clássica um pouco por todo o mundo, Angela Hewitt não duvida que é um preconceito considerar que o género musical só atrai um público mais velho. Pelo contrário. Eu acabei de dar um concerto para 800 pessoas em Seul em que 95 por cento da audiência tinha menos de 25 anos. Em Singapura também apareceram muitos jovens e em Tóquio a audiência era mista. Mas a verdade é que eu diria que a Ásia tem uma maior sensibilidade para a música clássica do que o ocidente". Angela conta um episódio que presenciou em Seul. Um carro enorme, luxuoso parou à sua frente. Lá dentro, a música estava aos gritos. Não era rap, não era rock ou pop. Era música clássica, era Bach. "E na televisão do aeroporto de Taipei estava dar um documentário sobre a vida de Schumann. Na Europa ou nos Estados Unidos estaria a dar a CNN!".
Angela tem pena que a música clássica não seja mais apreciada nos tempos que correm, mas está certa que se trata de uma questão de conhecimento. "Bach exprime todas as emoções na sua música, a alegria, a tristeza, a felicidade, a ansiedade, o desespero. E toda a gente tem emoções. Eu penso que a música clássica é para todos os públicos. Mas que há que ter contacto com ela, há que ouvi-la, conhecê-la".
A música clássica tem as suas particularidades. E num recital ainda mais. Angela Hewitt relembra o que um pianista dizia: há dois tipos de público, os que tossem e os que não tossem. Ela concorda. Não é fácil puxar por um público de um recital. Não se canta mais alto ou incita à dança, como se faria num concerto. Não se toca com mais garra se a audiência está distraída. Simplesmente espera-se que eles se concentrem nas emoções que estão a ser tocadas e, no fim, aplaudam.
"Eu tenho de conseguir transmitir todas essas emoções à audiência. E nada disto é fácil, porque preciso de conseguir fazer as diferentes vozes, com diferentes cores para que o público entenda as diferentes texturas". A música de Bach foi composta para a voz, violino e oboé, já que o primeiro piano só surgiu no final da vida do compositor, que faleceu em 1750. Por isso interpretar a sua obra num piano moderno é um desafio acrescido, mas para Hewitt transmitir através do piano as emoções que Bach compôs é perfeitamente natural. "O piano que hoje existe não existia no tempo dele, mas eu acho que ele adorava ter conhecido um instrumento que consegue imitar mesmo a voz humana. E um piano consegue cantar".

CAIXA
Master Class hoje para quatro seleccionados

Angela Hewitt não é só uma famosa intérprete de Bach. Ela é também uma famosa tutora de estudantes de piano pelo mundo fora, gravando dvds educacionais e dando workhops. Por convite, Hewitt também dá Master Classes a alunos de piano interessados em evoluir. É o que acontecerá hoje no Centro Cultural de Macau, onde Angela Hewitt dará conselhos a quatro alunos seleccionados que tocarão um prelúdio ou fuga do Cravo Bem Temperado, sob as suas instruções.
Para se inscreverem, os participantes tinham de possuir um certificado de piano de nível oito ou superior, ou qualquer outro certificado equivalente.

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