16.4.08

Gustavo da Roza veio a Macau falar de arquitectura e provocar consciências
O regresso do filho pródigo

Gustavo da Roza, "filho da terra", voltou a Macau como autoridade em arquitectura para uma palestra onde passou em revista a história do urbanismo de Macau, dos engenheiros jesuítas à actualidade. Provocador nato, deu que pensar e falar à assistência

Alfredo Vaz

Filho de pais de Macau, nascido em Hong Kong, formado e formador no Canadá, o professor Gustavo da Roza veio à RAEM a convite do Instituto Inter-Universitário para uma palestra subordinada ao tema Reflexões sobre arquitectura e património que decorreu ontem ao final da tarde. Falou com a autoridade de quem conhece o terreno, a história e as estórias, e com a frontalidade de quem não está envolvido nos meandros. Chamou as coisas pelos nomes e as pessoas pelo nome próprio. Falou-se da história de Macau, do colonialismo à actualidade. Da engenharia dos Jesuítas à corrupção no caso Ao Man Long.
Uma sala pequena demais para tanta gente interessada, uma intervenção que provocou consciências e diálogos. Se era um dos objectivos do professor ao voltar à casa dos pais, ele foi plenamente alcançado. Gustavo da Roza justificou convicções e provocou reacções.
Das quase duas horas de intervenção e debate extraem-se três tónicas importantes: i) que Macau precisa urgentemente de desenvolver competências em planeamento urbanístico; ii) que a intervenção dos arquitectos com autoridade é essencial para que tal não pareça arrogância (associado ao termo autoridade está, naturalmente, responsabilidade; iii) Gustavo da Roza ridicularizou e condenou os arquitectos que se demitem da sua intervenção profissional e fazem apenas uso das suas prerrogativas profissionais para obter dividendos, nomeadamente subscrevendo projectos que não realizaram.
Gustavo da Roza dividiu a sua análise em três períodos: de 1530 (chegada de Jorge Álvares a Macau) a 1750; de meados dos anos 1800 até ao final da Segunda Guerra Mundial (1945); de meados do século XX ao presente.
Para retratar a 1ª fase introduziu um toque contemporâneo referindo-se ao tempo dos jesuítas com recurso a um trabalho de campo que o próprio realizou no Verão de 1952, integrado numa equipa académica da Universidade de Hong Kong, instituição onde se licenciou em arquitectura. Um estudo da muralha das Ruínas de São Paulo, uma das ‘obras’ daquele período que aprecia, a par do Templo de A Má, entre outros: “Exemplos de como as coisas devem ser, com cuidado, integração e envolvimento social. Andam para aqui estes americanos a discutir se a cor do prédio deve ser vermelha ou azul, sem darem atenção ao que devem dar.”
Foi o mote para uma dissertação pela história de Macau, e de exemplos da arquitectura local e mundial. Das obras que mais o impressionam, pela positiva e pela negativa. Das muitas histórias que contou, e com as quais encantou.
Gustavo da Roza lembrou o Museu Marítimo, “um dos meus sítios preferidos. Já lá fui vezes sem conta, adoro as miniaturas dos barcos. O homem que fez aquelas obras foi um arquitecto português fugido à justiça na República e que se tornou figura pública em Macau pela qualidade do seu trabalho. Foi preso nesta terra, pelo que digo, sempre que conto esta história, que às vezes é melhor não se ser famoso, sobretudo se se tiver algo a esconder”, disse, arrancando risos à assistência. Por contraponto a um dos seus locais preferidos, Gustavo da Roza apontou o seu edifício de ‘antipatia’. “Qual é o prédio mais feio do mundo. Não estou a perguntar qual é o mais feio de Macau, mas do mundo?...o Hotel Lisboa”, respondeu ao mesmo tempo que parte da assistência o repetia quase em uníssono.
Por tudo isto, e por uma série de outros exemplos, Gustavo da Roza citou o arquitecto romano Vitruvio, o autor do manual mais antigo da arquitectura, recuperado depois no período Renacentista. A Endriatis – os três pilares da arquitectura - tem de estar presente na consciência dos arquitectos contemporâneos: Utilitas (utilidade), Firmita (firmeza) e Venustas (vistoso, um conceito bebido do português arcaico).


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Adalberto Tenreiro e Mário Duque respondem a repto de Gustavo da Roza
O desafio do professor

Dirigindo-se a uma plateia maioritariamente composta por alunos de arquitectura e pelos seus professores e também por arquitectos da praça, o professor Gustavo da Roza lançou um repto: “Seria muito atencioso da vossa parte considerarem poderem contribuir para a preservação do património no próprio continente chinês."
Os arquitectos Adalberto Tenreiro e Mário Duque responderam ao desafio e o PONTO FINAL deixa-lhe aqui as suas reflexões.

Mário Duque

"Em relação ao desafio, entendi-o da seguinte forma: que aquilo que hoje em dia se estuda em Macau e se usa em Macau não é só para consumo próprio, há uma certa integração regional em que o âmbito da informação que se tem em Macau é para ter aplicação não só na RAEM, mas também no âmbito regional. Isso faz sentido porque Macau é – necessariamente – uma província, uma região autónoma da China, e aquilo que se faz cá não só se reflecte internamente, mas é para ter um reflexo, em termos úteis, e relevante, nomeadamente no âmbito das formações.”
(...)
“O professor Gustavo da Roza é uma fonte de inspiração em relação às experiências que ele teve na terra, e pode relatar as coisas recorrendo à sua própria memória. Há aqui um conjunto de informação que é preciosa para quem tem percepção das coisas a que ele se reporta, ajuda a construir muita coisa.”

Adalberto Tenreiro

“Na Universidade de Hong Kong, eu tive alunos de arquitectura vindos da China que viam as coisas chinesas de Macau e diziam ‘como isto, há centenas de milhar na China'. Não é por acaso que foram os chineses que quiseram liderar a candidatura de Macau a património da Unesco, que fizeram com que Portugal esperasse, para que fosse Pequim a liderar esse processo.(...) Para eles, o que é importante é preservar as coisas chinesas em Macau. As coisas chinesas perto de coisas ocidentais na China, só em Macau.”
(...)
“É divertido ouvir as memórias de uma pessoa, porque ao mesmo tempo diz-nos coisas que a gente não conhece, mas ao mesmo tempo apaga-nos, e faz-nos ver coisas de uma maneira diferente, e isso é divertido. O levantamento que ele fez para a Universidade de Hong Kong dá uma noção do olhar de Hong Kong para Macau desde há imenso tempo. Interessante é saber também que a cara do próprio arquitecto projectista que está esculpida na fachada (do que são hoje as Ruínas de São Paulo), estudou na Escola de Engenharia Militar em Lisboa, o italiano Spínola.”


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Palestra no IIUM: Papel da administração portuguesa na actual situação da construção civil
Sales Marques acusa especulação imobiliária,
antes e agora


Na palestra de Gustavo da Roza, o ponto que motivou mais acesa discussão prendeu-se com a eventual responsabilidade da antiga administração portuguesa na actual situação das obras públicas e construção civil

Alfredo Vaz

O tema foi abordado pelo próprio orador, Gustavo da Roza, e lançou um pingue-pongue de observações, dúvidas, considerações e esclarecimentos que extravasaram o diálogo directo entre o arquitecto e quem lançou as questões, criando rapidamente um dialogo multilateral entre vários membros da audiência.
Gustavo da Roza estava no último dos três pontos da estrutura da sua apresentação (período do final da segunda grande guerra (1945) até ao presente, quando introduziu exemplos do colonialismo. Primeiro para dizer que Portugal usou Macau como uma estrutura de escape ao excesso de arquitectos que o país ‘produzia’: “Portugal administrava Macau como uma possessão. Nessa altura produziam-se na República mais arquitectos que na Itália ou Espanha, e dez vezes mais do que na própria Inglaterra. E porque a oferta excedia a procura, mandava-os para Macau. Aos bons, e aos outros. Isso provocou desequilíbrios no sistema.”
Depois, e foi este o ponto que animou o debate, a pergunta de uma pessoa da assistência: qual a quota parte de responsabilidade da administração colonial (portuguesa) em deixar terreno livre para os casos de corrupção que têm abalado a RAEM, nomeadamente o enredo do caso Ao Man Long?
Presente na assistência, Sales Marques saiu em defesa da sua ‘dama’. Presidente da Câmara Municipal de Macau à data dos factos (Presidente do Leal Senado de 1993 a 1999 e da Câmara Municipal de Macau Provisória de fins de 1999 até fins de 2001), pediu a palavra para intervir, começando por dizer que não estava ali a querer fazer uma limpeza da realidade, mas a repor os factos tal como eles aconteceram.
“Fiz esta intervenção porque acho que é importante repor a verdade no que diz respeito às hastas públicas e terrenos, porque aquilo que estava a ser dito aqui – e naturalmente por falta de informação – é que a Administração portuguesa nunca optou por essa solução, como aliás se pode consultar, através de jornais da época. Nos inícios dos anos noventa houve várias hastas públicas de terrenos incluindo vários aqui do NAPE. E muitas delas foram ganhas por empresas ou indivíduos que tinham na altura acesso a grandes créditos, dinheiro barato, capitais, eventualmente até do próprio interior da China, e de outras proveniências próximas. A verdade é que houve uma grande especulação imobiliária, e o próprio Governo Central teve de intervir e tomar algumas medidas radicais para controlar o crédito e assim controlar a inflação. Eu recordo-me que a inflação estava muito elevada no interior da China e, nomeadamente o Zhu Rongji, que na altura ainda não era primeiro-ministro mas a pessoa responsável pela parte económica, tomou algumas medidas que depois tiveram influência no que aconteceu a seguir aqui em Macau – pelo menos em algumas situações – que foi aquela facilidade de acesso a certos capitais deixou de existir com aquela fluência. Houve uma situação em que o crédito, que era muito barato e fácil deixou de o ser, e portanto houve uma série de casos – provavelmente alguns deles ainda hoje persistem, não tenho a certeza – de terrenos que foram arrematados em hasta pública, que foram concessionados, mas cujos prémios – pelo menos a totalidade deles – nunca foram completamente pagos. No final da Administração portuguesa havia dívidas de várias centenas de milhões de patacas (entre 800 a 900 milhões), essa é que é a verdade."
Em declarações ao PONTO FINAL a seguir ao término da conferência, Sales Marques quis ainda esclarecer que não tem nada contra a realização de hastas públicas – antes pelo contrario – mas que é preciso temperar os ‘prós’ e os ‘contras’: “A hasta pública para a venda de terrenos é uma medida transparente – não é isso que está em causa – e corresponde àquilo que muitas pessoas julgam que é a melhor forma de fazer a afectação dos terrenos...afectação não tanto, porque tem que ser uma medida politica do Governo. Os terrenos são afectados pelo Governo, para os fins que este julga serem os mais convenientes. Não é o povo – passo a expressão – que vai dizer se um terreno é para o comércio, ou é para a indústria ou o que quer que seja. Portanto, são políticas do Governo que fazem a afectação dos terrenos.”
Feito o esclarecimento, Sales Marques avançou para o comentário. “A sua venda ou a sua concessão pode eventualmente ser feita por hasta pública. Agora, estas também têm o seu senão, não é uma questão totalmente clara, sobretudo do ponto de vista dos resultados. Isto é, num momento, num processo, como me parece ser aquele pelo qual nós estamos a passar, um processo em que o investimento especulativo tem um peso muito elevado, é feito por fundos e empresas financeiras internacionais, onde o que importa não é se um edifício que é construído venha efectivamente a cumprir esse fim, se é para ser habitado ou utilizado para outros fins, mas onde o objectivo é ganhar nas margens de transacção, é manter ou elevar o valor do capital investido... Nessas situações, as hastas públicas podem ter um efeito adverso, podem não cumprir bem aquilo para o que estão pensadas, que é a melhor maneira de fazer certa justiça. Em certas circunstâncias, se calhar até na maioria delas, pode ser uma boa solução, mas há excepções à regra, e é isso que é preciso que as pessoas também pensem. Eu diria que, se calhar, na maioria das situações é excelente e pode ser a melhor – e mais justa – forma de tornar os terrenos acessíveis a toda a gente, democratizar o processo de concessão dos terrenos. Todavia, em algumas situações, em certos círculos da economia, em certas situações, pelas quais o mercado imobiliário está a passar – pode servir apenas para piorar ainda a situação, alimentar ainda mais a especulação e colocar o valor dos terrenos, e tudo o que vem por aí a jusante – incluindo o preço das habitações e das próprias rendas, a um nível completamente irrealista, que não tem nada a ver com o mercado interno de Macau.”

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