15.5.08

Artista José Drummond escreve sobre Robert Rauschenberg
Do Texas para o mundo

"Acredito firmemente que um contacto de pessoa a pessoa, através da arte, contém fortes poderes pacíficos, e é o melhor modo, não elitista, de partilhar informação exótica e comum, seduzindo-nos de forma promissora, no sentido de criar entendimentos mútuos, para o benefício de todos." Robert Rauschenberg

José Drummond

Foi nos tempos de Liceu, teria eu os meus quinze anos, que as imagens de Robert Rauschenberg me foram reveladas. Para a minha geração, estes mundos da arte e da música eram um verdadeiro ‘must’ num mundo português ainda em auto-redescoberta e com escassa informação, característica do início dos anos 80.
Foi, para mim, o tempo de todas as descobertas, de Morrison a Rimbaud nas letras, dos Sex Pistols aos Kraftwerk e às experiências de John Cage na música, de Duchamp a Warhol e a toda a geração da Pop nas artes plásticas.
O impacto das experiências de Warhol, David Hockney, Jasper Johns e principalmente Rauschenberg foram determinantes para um expressionismo latente e à flor da pele que tem atravessado a minha obra desde então.
Foi em 1989 que as minhas pinturas ocuparam pela primeira vez as paredes de uma galeria comercial numa exposição individual. Se, na altura, os meus trabalhos eram atravessados por um expressionismo de intensidade romântica mais próximo do alemão Anselm Kiefer, era no espaço privado do atelier que as imagens coloridas das ‘pinturas combinadas’ e a utilização livre dos materiais de Rauschenberg influenciavam o meu modo de trabalhar.
Como ele, e definitivamente pela sua influência, também eu povoei o meu estúdio de negativos tipográficos, de papel de jornal amassado, de pasta de papel, de cera, de embalagens de plástico. Foi através do conhecimento da sua obra que as minhas ‘coisas’ se envolveram na passagem do ready-made a um modo mais expressionista e activo. Foi por essa energia que viveram próximo das ‘assemblages’. Por aí passei a experimentar a colagem de fotos e a utilizar outras técnicas de impressão sobre a superfície pictórica.
Foi um período profícuo, onde os limites entre pintura e escultura esbateram-se conscientemente e onde evoluí naturalmente de um estado iniciático de junção de pigmentos a outras matérias como metais e madeiras ao mundo da performance e ao mundo de colaboração com outras expressões, como a dança ou a música. Nessa altura, sabia apenas o que era o meu atelier, vivia para ele e por ele, e essas situações caracterizaram o meu dia a dia com alegria e fascínio.
Anos dourados onde, na energia de uma certa juventude, a pintura respirava liberdade de intenção e deixava-se flutuar entre pinceladas grossas, manchas e linhas que surgiam em confronto com o desconhecido e com a experimentação.
Se Duchamp e Warhol são os artistas que conceptualmente tiveram maior importância no meu desenvolvimento como autor, são sem dúvida Beuys e Rauschenberg aqueles que me mostraram o caminho da experimentação, onde o quebrar das regras criava a alternância necessária que melhor me levou ao desenvolvimento de uma certa linguagem.

O novo mundo

Nova Iorque é a cidade que mais influência teve em mim neste período de procura de jovem autor. Se, já antes, nas minhas viagens até Paris, Madrid, Berlim e Londres, tinha tido a oportunidade de me regalar com a experiência visual que as obras de Rauschenberg proporcionam, foi na cidade americana que em 4 visitas consequentes me apercebi da sua real dimensão como artista.
O movimento Neodadaísta da cidade americana respira-se por todo o lado e Rauschenberg é apresentado como o seu expoente mais alto. Mais que um ícone da Pop ou do Neodadaísmo, o artista protagoniza a liberdade e a comunicação, modelos que também caracterizam a cidade.
Rauschenberg foi um artista inquieto, de pensamento optimista, que acreditava no papel da Arte como espaço de redenção social e histórica. A multiplicidade do seu imaginário em constante processo de transformação ou transfiguração é revigorada e revitalizada pela operação poética do artista.
De um certo ponto de vista, todos os seus trabalhos são auto-retratos, ou melhor, flashes de situações da sua vida, do seu quotidiano. Lugares onde a sedução das suas inesperadas composições ilustra a magia da Arte. São momentos em que aquilo que parece não ter visibilidade se mescla com o mundo natural e orgânico, hibridizando-se em símbolos e fragmentos de estranhamento e de viagem pessoal.
Foi com Rauschenberg, em Nova Iorque, que eu parti à aventura de outros autores americanos como Bruce Nauman, Bill Viola e Cindy Sherman. Artistas que posteriormente viriam a ter um impacto enorme no meu trabalho.
Na Ásia, quase o esqueci, durante anos de aproximação ao vídeo e à fotografia, mas a sua fantasia retornou em grande força no início deste ano, quando reencontrei uma das grandes paixões da minha vida, a pintura...
Sem Rauschenberg, o lirismo entre o precário e o transitório, os apagamentos e as revelações entre o desejo e o inesperado, o jogo caleidoscópico de inúmeras imagens a assaltarem a mente em modo instável e dinâmico não pautaria o meu modo de trabalhar a pintura e a arte como o faço. Como ele, acredito que a Arte tem uma função redentora, no meu caso, terapêutica até...
Pela liberdade que aprendi, pela enorme vontade de constantemente me auto-redescobrir, tentando ultrapassar todas as diferenças entre disciplinas. Pela noção de que o verdadeiro talento reside nessa alegria de quebrar fronteiras e não ter medo da experimentação... Por todos nós a quem mostraste não ter medo do caminho da verdade, obrigado.

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