Iu Vai Pan deixa cargo de reitor da Universidade de Macau ao fim de nove anos
"Queremos que Macau seja um centro
de estudos dos países de língua portuguesa"
Em Agosto, Iu Vai Pan deixa o cargo de reitor, sendo substituído por Zhao Wei, mas não abandona a Universidade de Macau. O professor volta à investigação para trabalhar na preservação e monotorização do património classificado. Para trás ficam nove anos de uma sociedade para cujo crescimento contribuiu enquanto dirigente máximo da instituição de ensino que mais fez pela formação académica de muitos dos principais "actores" da sociedade local
Alfredo Vaz
"Queremos que Macau seja um centro
de estudos dos países de língua portuguesa"
Em Agosto, Iu Vai Pan deixa o cargo de reitor, sendo substituído por Zhao Wei, mas não abandona a Universidade de Macau. O professor volta à investigação para trabalhar na preservação e monotorização do património classificado. Para trás ficam nove anos de uma sociedade para cujo crescimento contribuiu enquanto dirigente máximo da instituição de ensino que mais fez pela formação académica de muitos dos principais "actores" da sociedade local
Alfredo Vaz
PONTO FINAL - Sendo Macau uma plataforma estratégica do governo chinês para os países lusófonos, acha que há espaço e necessidade para se criar um curso de Ciências Sociais na ‘ainda sua’ universidade?
Iu Vai Pan – Temos que olhar primeiro para a situação global: temos o Fórum para a Lusofonia, reuniões ao nível diplomático, encontros comerciais ao mais alto nível. Ou seja, Macau é mais uma base para reuniões com os países lusófonos. Mas estes são encontros ao mais alto nível. O que penso que podemos fazer, contribuir, é formar mais técnicos bilingues, essa é uma das áreas em que podemos investir. Do nosso ponto de vista, temos que providenciar mais conhecimentos sobre esses países, mas não tanto ao nível do ensino da língua...
Esse era precisamente o ângulo da pergunta...
I. V. P. – Pois, mas em termos de economia ou desenvolvimento social, isso por si não constitui matéria para se criar um programa, um curso, de Ciências Sociais. As pessoas podem dizer que podíamos fazer uma vintena de cursos, mas esse para mim esse não é o caminho, as pessoas precisam de contacto com a cultura e com os povos desses países, precisam de ter uma vivência. O que já fizemos foi uma abordagem, um levantamento, com a faculdade de gestão e eles têm uma vertente vocacionada para os estudos comerciais dos países lusófonos. Já foram mandatados nesse sentido. Por outro lado, queremos que no departamento de estudos portugueses haja também uma vertente económica vocacionada para a situação nos países lusófonos. É portanto essa a nossa estratégia para – e respondendo à sua pergunta – darmos instrumentos aos alunos da nossa universidade, através dessas duas faculdades, a de gestão e a de estudos portugueses, mas não vejo espaço para nem necessidade de se criar um curso de ciências sociais. Macau tem um papel pequeno, de intermediário, a tal plataforma, já que as negociações ao mais alto nível são entre os governos da China e dos diferentes países lusófonos.
Ainda assim, não pensa, não quer, não vê necessidade de ir mais longe?
I. V. P. – Sim, mas estava a faltar-me outra iniciativa, o que distingue o nosso papel do de outras universidades na China. Macau distingue-se do resto da China por ter duas línguas oficiais, e muito mais do que duas culturas. Os Estudos portugueses são uma área muito importante. Temos planos a cinco e dez anos em que queremos que Macau seja um centro de estudos dos países de língua portuguesa. Sublinho que não estou a falar de uma licenciatura, mas gostaríamos de desenvolver um centro de estudos na nossa universidade.
Integrado no Departamento de Estudos Portugueses?
I. V. P. – Não, a ideia é que funcione sob a alçada da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
Em que passo está o processo?
I. V. P. – Para já temos algumas ideias, uma tantas noções. O professor Alan Baxter, director do Departamento de Estudos Portugueses, está a gizar um plano.
Pode aprofundar sobre o conteúdo dessas ideias e noções?
I. V. P. – O que nós queremos ter é uma base de estudos que seja de referência no continente asiático, os alunos que queiram investir nos conhecimentos sobre a cultura e o modo de operar com esses países tenham a nossa universidade como referência e venham estudar connosco.
Assegura então que o programa de Estudos Portugueses tem viabilidade e é para continuar a investir?
I. V. P. – Sim, sem dúvida, não escondemos nada na manga, é para continuar a investir, tem o seu espaço próprio e representa uma grande valia.
Um país, dois sistemas. Uma universidade, várias valias...
I. V. P. – Sim, a Lei Básica estipula que estas regras se mantenham por 50 anos após a transição, até 2049. Mas eu – e esta é uma opinião muito pessoal, acredito – e é até o meu desejo, que o sistema se vai manter muito para lá de 2049, estou muito optimista.
O que traz à colação a falta de tradutores e intérpretes, uma lacuna cada vez mais evidente em Macau, e não estamos a limitar esta pergunta ao chinês e português. A Universidade de Macau teve um curso de tradutores-intérpretes até 1997, não será altura de o reactivar?
I. V. P. – Sim, por isso há dois anos, e repetimos a experiência o ano passado, lançámos um programa de mestrado em tradução, chinês, inglês e português.
Porque não voltar ao sistema de 1997 e criar uma licenciatura?
I. V. P. – Para lhe ser franco, não sei se teríamos candidatos em número que o justificasse. E - ressalvando que esta não é a minha área – não penso que uma licenciatura forme, por si, um tradutor (na verdadeira acepção da palavra). Dou-lhe o meu exemplo, sou chinês, levei cerca de quatro anos a dominar a língua inglesa, consigo falar ‘OK’, mas precisaria de muito mais tempo para dominar as técnicas de tradução. Por isso acho que temos que investir a um outro nível, talvez proporcionar mestrados a pessoas com formação geral em outras áreas, mas com apetência para serem tradutores. Precisamos sobretudo de pessoas bilingues com interesse em serem tradutores.
Por outro lado, a situação em Macau é muito diferente daquela que encontramos nas outras cidades da China. Macau é uma cidade com dinâmicas próprias, muito relaxada...as pessoas não são agressivas – no bom sentido do termo – não sentem necessidade de o ser, é cultural. Na China é muito diferente.
Voltando então à solução...
I. V. P. – Certo, mas concluindo, acho que mesmo que investíssemos cinco anos, correríamos o risco de não conseguir ter um bom tradutor. Penso portanto que a solução passa por um curso básico na língua escolhida, e treino específico e pós-graduações. Em Macau temos muitos intérpretes, e são bons, mas são bons na interpretação oral, e maus na escrita. A maior parte dos bons tradutores que temos em Macau são macaenses, bons na oralidade, mas com graves lacunas na tradução escrita. Ou seja, conseguem dar conta do recado em traduções com linguagem comum, mas têm grandes dificuldades em áreas técnicas e específicas.
Outra questão que se põe é que os melhores entre os bilingues são recrutados para áreas específicas, não necessariamente para funções de tradução ou interpretação.
I. V. P. – Precisamente. Os melhores acabam por ir parar à magistratura ou advocacia, especializam-se nessas áreas. Temos vários exemplos de óptimos tradutores que são neste momento juízes da RAEM. E percebe-se perfeitamente, é uma questão de equilíbrio e harmonia sociais, Macau tem falta de magistrados e de operadores de direito bilingues.
E como consegue a Universidade de Macau atrair alunos para os seus cursos numa altura em que os jovens em idade universitária são ‘tentados’ pelo dinheiro ‘fácil’ que as operadoras de jogo lhes acenam?
I. V. P. – A situação não é tão dramática quanto parece à primeira vista. Temos números que não são do domínio público – mas também não estão escondidos – que nos animam. Quem está determinado em seguir a vida académica vai mesmo para as universidades, a menos que tenha um problema económico familiar sério e precise de arranjar imediatamente um emprego. Esta é uma questão que já tem alguns anos, que se põe com maior acuidade desde a abertura do primeiro casino da nova era, o Sands Macao, em 2004. Falando com números, não tivemos uma quebra, essa é a realidade dos factos.
Mas tem um ‘plano B’, de contingência, para o caso de essa quebra vir a acontecer?
I. V. P. – Sim, temos várias alternativas. Neste momento o nosso ‘ratio’ de captação de alunos de Macau é de um para quatro: disponibilizamos mil lugares para os melhores alunos de entre quatro mil candidatos. Em caso de ‘emergência’ podíamos baixar os critérios de admissão, não muito, mas o suficiente, e aceitar alunos com não tão boas credenciais, mil em cada três mil, isto para manter uma estabilidade no número absoluto de alunos na Universidade.
Outra forma é aumentar a quota para os alunos do continente chinês. No plano a dez anos temos já esse objectivo, aumentar quota de estudantes do exterior dos actuais 18 para 30 por cento do número total dos alunos da nossa universidade.
Mas não estão assim a privilegiar a quantidade em detrimento da qualidade?
I. V. P. – Não. O ano passado tivemos quase seis mil candidatos do continente chinês e só admitimos 200, no universo dos 1200 alunos inscritos na nossa (instituição de ensino). E tem sido assim nos últimos anos, sempre a subir. E o mesmo acontece com os alunos de Macau, cada vez mais, e só entram os melhores. A admissão de alunos locais processa-se segundo dois critérios. Um, aquele a que chamamos de ‘admissão por recomendação directa’, reservado aos 10 por cento de alunos com melhores notas no ensino secundário. A estes fazemos directamente uma entrevista, e – regra geral – são aceites sem terem exame de admissão. Para estes casos temos uma quota fixa de 200 vagas por ano. Somando os números o que acontece todos os anos é que dos 1200 alunos que admitimos, 200 são os melhores candidatos da China e outros 200 são a ‘nata’ do ensino secundário local. Penso que isso responde à pergunta sobre as preocupações no critério de qualidade. Os outros 800 têm que se submeter a exames de admissão. Acredito que tenhamos entre nós pelo menos um terço dos melhores estudantes de Macau.
Nos últimos anos têm sido criadas em Macau novas instituições de ensino superior, que parecem nascer, admita-me a expressão, ‘como cogumelos’. Como é que a Universidade de Macau convive e compete com a concorrência?
I. V. P. – Aumentando a qualidade. Para sermos competitivos temos que apostar na qualidade: dos professores – não apenas com credenciais académicas, mas também na vertente da pedagogia, do relacionamento humano com os alunos - e dos programas dos cursos. E manter igualmente um bom ‘ ratio’ entre o número de alunos e pessoal académico. Ou seja, não podemos apenas aumentar o número de estudantes, temos que ter atenção à proporção aluno/professor.
Quanto às novas faculdades. Começando pela hipótese de uma faculdade de ciências da vida, ou mesmo de medicina, Macau precisa, justifica-se criar uma estrutura de raiz?
I. V. P. – (pensativo) Ora bem, estamos a falar de uma estrutura muito pesada. Em primeiro lugar, Macau precisa de hospitais, precisamos de médicos...claro que me pode dizer que também precisamos de uma Universidade de Medicina, mas temos que pensar primeiro na sua viabilidade. Uma boa escola de medicina só é viável numa sociedade a uma escala maior do que a de Macau, a começar logo pelo número de candidatos que era preciso alcançar, e dos pacientes a tratar. Temos hoje em dia um problema de falta de médicos especializados, mas devemos investir na sua formação de raiz, num modelo universitário a criar do zero, se o número de pessoas a tratar não o justifica à partida? Podíamos entrar numa bola de neve: poucos pacientes, poucos casos, falta de rotinas de prática, empobrecimento gradual na aplicação dos conhecimentos adquiridos, e por aí fora. Ou seja, para lhe responder directamente, penso que ainda não, não com uma Macau com esta dimensão.
E em relação às humanísticas, em que fase está o processo de lançamento do programa de filosofias?
I. V. P. – Filosofia está em fase avançada. Entretanto abrimos há alguns meses as inscrições para bacharelato e mestrado em História, que começa em Setembro. O próximo alvo é o programa de Estudos Religiosos: vamos começar com um programa mais ‘modesto’ mas com o objectivo de o tornar numa licenciatura.
CAIXA
Perfil de Iu Vai Pan
O engenheiro que não queria ser reitor
Perfil de Iu Vai Pan
O engenheiro que não queria ser reitor
Nascido em Macau em 1951, com passaporte português, Iu Vai Pan chegou ao topo da carreira académica na Universidade da sua terra Natal quase que por ironia do destino.
Licenciado na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Baptista de Hong Kong, Iu especializou-se em Engenharia Estrutural em Southhampton, Inglaterra. E foi nas terras de sua majestade que recebeu um primeiro convite “muito tentador” para trabalhar para uma empresa da sua área de especialidade. “Tinha passaporte português, e Portugal tinha entrado para a CEE um ano antes (pedido de adesão em 1977, entrada formal em 1985). Mas havia uma moratória, e a lei inglesa exigia condições que eu não reunia. Parti desiludido, mas o tempo tomou conta da minha vida”, diz com um sorriso nos lábios.
Não passou muito tempo desde o regresso a casa ao convite para ingressar na Universidade de Macau, onde em 1986 foi criada a Faculdade de Ciências e Tecnologia. Em 1989, tornou-se professor assistente da faculdade, da qual era também o ‘coordenador de facto’: “Tivemos uma série de problemas logo no início, nomeadamente a falta de laboratórios (muitos conhecimentos têm que ter aplicação em laboratório) criámos uma parceria com o Laboratório de Engenharia Civil de Macau (LECM) – junto à Sé de Macau – mas não era bom estarmos dependentes de entidades externas, por isso lutei por dinheiro para os conseguir por cá.”
Em 1995, foi nomeado vice-director da faculdade, chegando ao cargo máximo de director dois anos depois, em 97.
Até que em Maio de 1999, já com a transição ‘à porta’, recebeu um telefonema de Jorge Rangel, o então secretário-adjunto para a Educação e Juventude, a convidá-lo para um chá. ”Tinha chegado a altura do então Reitor se reformar, por ter 65 anos e atingir o limite de idade para ocupar o cargo. O dr. Rangel teve a amabilidade de me convidar para ocupar o lugar. Considerei e respondi que sim. Aceitei porque tinha uma pessoa de extrema confiança na universidade, o professor Rui Martins, do qual fui vice-director quando ele dirigia a universidade de ciências e tecnologia. Quando Jorge Rangel me pediu para ser reitor hesitei, mas quando o professor Rui Martins disse que continuaria a apoiar-me, decidi avançar. Colaborávamos desde 1992, e tínhamos uma excelente comunicação. Na altura não tinha grande confiança nas minhas aptidões como futuro reitor, mas o Dr Rangel convenceu-me, aligeirou as ‘coisas’ disse que eu o cargo era mais representativo, que eu seria a cara da Universidade. Para mim isso já era um desafio, porque considero-me uma pessoa muito tímida (risos) e não lido bem com as luzes da ribalta, apesar de ter sido eleito chefe de turma aos 12 anos, uma experiência marcante (mais risos). Mas aceitei, e já lá vão nove anos!”
Iu Vai Pan deixa a Reitoria, mas mantém-se na Universidade de Macau. Especializado em engenharia de estruturas vai fazer investigação na área da manutenção, restauro e manutenção dos edifícios classificados pela UNESCO como Património Mundial. “Temos uma equipa de investigação de engenharia estrutural aqui na universidade, e esta é uma área em que queremos investir, e que me é muito querida. Vamos enviar académicos para universidades na Europa, integrados num mestrado em monotorização de edifícios classificados, uma iniciativa conjunta da Universidade do Minho, e de uma universidade italiana, uma espanhola e de uma outra da República Checa. É por aqui que me vou deixar ficar”, concluiu com um olhar contemplativo, soltando um suspiro e olhando pela janela para o edifício contíguo da universidade que viu nascer (nas vindas a Macau para estar com a família e os amigos enquanto estudava na Baptist University de Hong Kong) e que viu crescer.
AV