8.7.08

Arnaldo Gonçalves escreve livro sobre Macau e China, democracia e direito
Um «ovni» que aterra esta semana em Macau

É lançado na sexta-feira um livro que fala sobre política em Macau! Mas essa é só uma das estranhezas que este «ovni» nos apresenta

João Paulo Meneses
putaoya@hotmail.com

No desinteressante panorama editorial de Macau, este livro de Arnaldo Gonçalves pode ser olhado como olham as personagens dos filmes para os ovnis. Com estranheza, curiosidade, admiração e, mesmo, receio – alguém terá medo deste livro?
O livro fala de democracia em Macau e isso pode incomodar.
Arnaldo Gonçalves junta neste «O Poder e o Direito, Ensaios de Direito Constitucional e Ciência Política» uma dezena de trabalhos escritos por si, uns originais, outros previamente publicados; uns em inglês outros em português.
A ligá-los o gosto pela investigação, que o autor desenvolve há décadas e que, como diz na Introdução, «reflectem a minha formação dicotómica como jurista e politólogo».
Para que serve este livro, muito mais se alguns dos textos já eram conhecidos?
Arnaldo Gonçalves explica, no mesmo texto de abertura, que «Este livro é dirigido aos jovens que por e-mail ou fax me procuram dirigindo-me questões pertinentes sobre ciência política, relações internacionais ou a projecção da China no mundo. Sinto-me, por eles, na obrigação de partilhar, testemunhar vivências que me marcaram e à forma como interpreto o mundo. Faço-o, também, como professor e investigador, condições que acima das outras são as minhas balizas de referência».
E que podem procurar esses jovens? O autor é dos poucos que está a reflectir sobre o presente político de Macau – embora o livro não se limite a esta zona do mundo (há textos sobre as Nações Unidas, sobre «a crise da democracia» ou sobre os fundamentos da «Lei Natural»), embora devamos entender sempre a realidade local como idiossincraticamente ligada à de Hong Kong ou mesmo em estreita relação com a China.
A propósito das autonomias de HK e Macau, diz Arnaldo Gonçalves que «this paradigm of autonomy may be an example (a case-study) for countries seeking constitutional solutions for the copious ethnic, cultural, linguistic and racial complexities that portray the world we live in». Não é por acaso que, recentemente, o Kosovo propôs como modelo a adoptar as RAE do Sul da China.

Para perceber o que está a acontecer

Arnaldo Gonçalves não é um historiador e os seus textos reflectem isso. É um politólogo que analisa o presente e a realidade que lhe está mais próxima nessa dupla vertente da política e do direito.
Antes da transição foram publicados alguns textos que ajudaram a perceber o momento único que se vivia – e vive – nesta zona do mundo.
Depois da transição esses textos foram rareando – e não foi porque a situação se tivesse tornado mais desinteressante aos olhos dos politólogos.
Por isso este livro de Arnaldo Gonçalves é – além de um ovni – um registo para memória futura. Vai ser preciso lê-lo, não só agora como daqui a alguns anos, para se perceber o que está acontecer. Sim, porque o livro não renega essa vertente de interpretar o presente. O autor diz por exemplo que «the MSAR has an encounter with destiny in two years’ time when a second Chief Executive is to be elected and the necessary steps will be taken to elect a brand-new legislature, the fourth in the MSAR’s short history. It would be decisive if Macau could count on a new MLA elected through universal and direct suffrage where a wider and more inclusive representation would result». Um encontro com o destino, que depende dos deuses do Olimpo, e também do que acontecer em Hong Kong, entretanto: «for its faith, Macau may be compelled to rely, as it did before, on the
favors of the gods of Olympus and the good luck of its neighbour»

Um contributo para os 10 anos

Agora que se aproxima os 10 anos da transição – e que todos os balanços são legítimos e necessários - «O Poder e o Direito, Ensaios de Direito Constitucional e Ciência Política» é um primeiro contributo. Um contributo que o autor assume, ao citar uma das suas referências políticas mais consistentes, Hannah Arendt: «ainda nos cabe a arte de exercitar a alteridade, de assumir responsabilidade por quem somos, pelo modo como agimos, e por que mundo somos responsáveis».
Que outros contributos se aproximem e possam ser convocados por este desafio do autor e também do editor, Luis Ortet.
Com estranheza, tudo bem; curiosidade, muita; a admiração necessária; mas sem receio.

GONÇALVES, Arnaldo, «O Poder e o Direito, Ensaios de Direito Constitucional e Ciência Política». Macau: Delta Edições, 2008, 350 páginas.


*****


À conversa com o autor
O mundo dos livros está (quase) morto em Macau

Explica porque tem uma visão liberal da vida e do mundo. Diz que não tem medo. Diz que quer dar um contributo. Quem o diz é Arnaldo Gonçalves

João Paulo Meneses
putaoya@hotmail.com

PONTO FINAL – Considera que há um fio condutor (para além do autor) dos textos?
Arnaldo Gonçalves – Creio que sim. Há uma preocupação de olhar para o fenómeno do poder, pelas suas várias expressões e fisionomias e perceber em que medida ele precede - tanto hoje como há 2000 anos - o problema do Direito. Creio que esta é uma das questões mais decisivas para se perceber as dificuldades de implantação da democracia, apesar do seu manifesto "appeal" e a razão de ser de um certo revivalismo dos regimes autoritários, ou pelo menos dos líderes solitários, eficazes e determinados.

PF – Que lugar pensa que o livro ocupa – face à oferta bibliográfica existente em Macau?

AG – Quase me tentava a dizer que não há oferta bibliográfica em Macau. Fora as iniciativas do Luís Ortet e do Carlos Morais José à frente dos respectivos projectos editoriais, o mundo dos livros está morto em Macau. Não há interesse da comunidade portuguesa e muito pouco interesse da comunidade chinesa. Pelo que me apercebo de conversas com colegas chineses as edições em língua chinesa são cópias das do continente e em geral de muito má qualidade. Isso é reflexo de uma sociedade civil pobre e muitas vezes auto-amordaçada.

PF – Sente que estas são preocupações suas e, provavelmente de mais um ou dois?
AG – Sinto sim. Muitas vezes. A preguiça mental e a falta de curiosidade intelectual é comum nas novas gerações. Concretiza-se o esforço indispensável para conseguir um resultado concreto, seja o certificado de um curso superior que permite o acesso a um determinado cargo ou a função profissional. Nas mais antigas, as gerações dos 50 e dos 40 anos, de certa maneira desistiu-se de se ter incomodidades intelectuais ou mesmo morais. As pessoas adaptam-se de forma opaca a um dia-a-dia sensaborão, sem grande exigência intelectual, que não ponha em causa a sua comodidade (ou preguiça). Disso é reflexo o facto de os debates que se organizam em Macau estarem às moscas. As pessoas não se mexem para participar em seja o que for.

Não há nada para Portugal se envergonhar

PF – É um livro que pode sair em inglês (HK) e China?
AG – Não faço ideia. Imagino que teria interesse em sair em Hong Kong onde existe mercado para livros que tratam – como procuro fazer - o fenómeno politico e trabalham a análise numa perspectiva multidisciplinar, tanto da ciência politica como do direito constitucional, quadros científicos que estiveram sempre interligados. Acho mais difícil na China. Apesar dos avanços da última década não existe liberdade de expressão e as opiniões são sempre vigiadas e controladas, sobretudo de quem é estrangeiro.

PF – A RAEM está a fazer 10 anos; este é um livro que (também) fala da RAEM; faz sentido olhar para trás e comparar?
AG – Exacto, este é um livro que fala da RAEM entre outras coisas. Mas não foi esse o objectivo que ditou que fosse escrito e editado. Concretizado meio século de vida cheia, como afirmo na introdução, preocupou-me deixar alguns traços da minha visão do mundo e também da transição de Macau e das transformações políticas e sociais que desde há três décadas ocorrem na China. Cheguei a Macau em fins de 1988. Faço este ano 20 anos de contacto e monitoragem da realidade de Macau quer como antigo território administrado por Portugal quer como parte da Republica Popular da China. Haverá dentro de alguns anos pouca gente que cumule esta dupla experiência. E essa é uma responsabilidade pessoal que não posso, nem quero enjeitar. O balanço destes 10 anos é indispensável e necessário. Sobretudo para as novas gerações perceberem o que se projectou e o que se concretizou. E nisso conjugam-se responsabilidades de dois poderes administrantes: o português e o chinês. Quanto ao primeiro tenho-o afirmado em vários fora: não há nada que nos envergonhe, aliás há muito de motivo de orgulho sobre o que fizemos aqui e não fizemos, por exemplo, na África de língua portuguesa. Quanto ao segundo, é chegado o momento de fazer um balanço. Ninguém que exerce funções públicas pode estar isento do julgamento de mérito dos seus concidadãos e deste caso dos administrados. E todos os governantes têm sucessos e fracassos. Sempre foi assim. Não conheci nem conheço políticos virtuosos no sentido em que Cícero lhe atribuía.

Um homem sem medo

PF – Este é o livro do Arnaldo Gonçalves docente mas não do «político» (no sentido da «polis»)? Há diferenças?
AG – Este é um livro de um académico e intelectual, condições a que acima das outras me reconduzo. O centro da minha vida é a investigação e a docência. Gosto muito da docência e do contacto com os jovens. Preocupa-me dar-lhes referências, valores, "abaná-los" e não propriamente debitar conhecimentos e torná-los destinatários passivos destes. Faço-o com muito gosto, nestes sete anos de docência no ensino superior, tanto em Portugal como em Macau. O meu livro dá pistas para a reflexão da tensão enorme mas estimulante entre o Poder e o Direito. Um e outro não se neutralizam mas completam-se. Vejo, muitas vezes, os meus colegas juristas acomodados à visão de um estado positivista decorado (ou instruído) com as leis mais bonitas e mais modernas mas incapaz de dar alento as expectativas de progresso e justiça social das pessoas. E quando esse estado falha, as pessoas são incapazes de compreender o que falhou. E porquê. E entra-se no ciclo de novas leis destinadas a corrigir os "erros" das primeiras sem haver o cuidado de compreender que o problema não é de leis mais ou menos imperfeitas, mas de leis a mais, que não são aplicadas ou mal aplicadas. Em Macau, mas também em Portugal, o problema fundamental é da autoridade e credibilidade dos poderes públicos. E quando o estado não tem autoridade tudo rui a volta. Tenho em termos cívicos procurado ter sempre uma intervenção à luz da leitura que faço dos problemas e dos desafios sociais. Sou, na tradição de Aristóteles um "homem político" porque preocupado com os problemas dos meus cidadãos. Acordei para a política muito novo. Aos 19 anos entrei para os Comités de Luta Anticolonial, uma organização clandestina estudantil ligada à Federação dos Estudantes Marxistas-Leninistas. Fiz o meu trajecto no maoísmo e cortei amarras quando em 1976 percebi que o "partido" não podia mandar na minha vida pessoal. Acho que foi por aí que comecei a entender a natureza totalitária e desumanizante do comunismo, nas suas várias expressões. E pouco a pouco aproximei-me da visão liberal que ilustra melhor a minha visão do mundo e da "procura da felicidade". O Estado morre à porta da minha porta. E o colectivo, a classe operária (ou a nação) é uma mistificação, um logro, uma falsidade. Sinto que, como intelectual que não tem medo, posso ajudar os outros a pensar e a reflectir na vida e na sociedade. E dizer o que penso de uma forma elevada e educada. E o dever da minha geração que viveu e sonhou em todas as utopias e "amanhãs cantantes". No fundo, bem lá no limite, o valor maior que nos distingue dos animais e dos imbecis é o amor a liberdade. Quando se a tem, não se larga.

Edições Anteriores

Arquivo

DIRECTOR Paulo Reis REDACÇÃO Isabel Castro, Rui Cid, João Paulo Meneses (Portugal); COLABORADORES Cristina Lobo; Paulo A. Azevedo; Luciana Leitão; Vítor Rebelo DESIGN Inês de Campos Alves PAGINAÇÃO José Figueiredo; Maria Soares FOTOGRAFIA Carmo Correia; Frank Regourd AGÊNCIA Lusa PUBLICIDADE Karen Leong PROPRIEDADE, ADMINISTRAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Praia Grande Edições, Lda IMPRESSÃO Tipografia Welfare, Ltd MORADA Alameda Dr Carlos d'Assumpção 263, edf China Civil Plaza, 7º andar I, Macau TELEFONE 28339566/28338583 FAX 28339563 E-MAIL pontofinalmacau@gmail.com