ANTÓNIO JÚLIO DUARTE FOTOGRAFA O QUE ESTÁ POR DETRÁS DO "BOOM" DE MACAU
A realidade dura
António Júlio Duarte, um dos grandes nomes da fotografia contemporânea portuguesa, está em Macau para registar as transformações do "boom" económico alimentado a casinos
Marta Curto
A realidade dura
António Júlio Duarte, um dos grandes nomes da fotografia contemporânea portuguesa, está em Macau para registar as transformações do "boom" económico alimentado a casinos
Marta Curto
Em parceria com a Fundação Oriente, o fotógrafo português António Júlio Duarte, de 43 anos, volta a captar Macau. As imagens irão ser depois expostas no Museu do Oriente, que tem inauguração em Lisboa prevista para 2009.
António não se propõe a apanhar o exotismo oriental, nem a China de Macau, nem os riquexós ou os templos bairristas. Quer antes as luzes dos casinos, os pescadores de Coloane, as prostitutas de rua na esquina das Docas, o trânsito na Horta e Costa, as filas do jetfoil, os filipinos que se arrastam no Leal Senado pela noite dentro. Captar a realidade com a sua máquina de filme. Não gosta, nem quer, digitais.
Na madrugada de ontem, esteve nas Portas do Cerco a fotografar os chineses que ali passam, direitos aos autocarros dos casinos. "A fotografia para mim é uma justificação da minha curiosidade, justifica a minha presença em certos sítios. Eu gosto da banalidade, da crueza da vida, do dia a dia", explica o fotógrafo, que já vai na sua terceira visita a Macau.
De cigarro na mão, sentado a uma mesa do Starbucks da praça do Leal Senado, António conta que "o Oriente sempre me atraiu. Mas não era o exotismo, nem nada disso. Só me sentia em casa aqui". E a primeira vez que António sentiu isso foi em Banguecoque. Aterrou, apanhou um táxi e dirigiu-se ao hotel. Era só uma escala, no dia seguinte viria para Macau. Mas logo ali se sentiu confortável, como se pertencesse aquele caos.
Estávamos em 1990 e António acabaria por fotografar em Singapura, Malásia, Sri Lanka e Paquistão, entre outros. Mas naquela altura, frequentava o Royal College of Art, no Reino Unido, e tinha acabado de ganhar o prémio Kodak com uma reportagem na Guiné-Bissau, para onde tinha ido a convite da UNICEF.
As oportunidades que se lhe abriam no horizonte eram múltiplas e o Oriente aparecia como uma estrela. Entrava num mundo que sempre o fascinara, rumo a Macau para fotografar o que se lhe aparecesse durante três semanas.
"Achei Macau parado no tempo, as pessoas cristalizadas, ainda a viver num tempo colonial. E a própria cidade era muito lenta, provinciana. Mas a verdade é que não se sentia que se tratava de território português. Aliás, Macau parecia continuar a ser território chinês, a presença portuguesa só era tolerada".
Nove anos depois, António retornava a Macau para aceitar o convite da Fundação Oriente de fotografar a RAEM antes do "handover", no projecto Lótus. "Lembro-me que nessa altura havia muitas confusões, assaltos, e até tiroteios. Já sei que hoje nada disso acontece. Foi a pesada mão da China que caiu sobre Macau".
Desta vez, foi António que tomou a iniciativa e fez a proposta à Fundação Oriente. Queria tentar encontrar o que está por trás das notícias que reduzem a RAEM a casinos e ao boom económico e ver no que se havia tornado Macau nove anos depois. Dez anos seria um numero mais redondo, mas o fotógrafo admite, rindo, que funciona por um sistema numérico diferente.
"Eu ainda não tenho um plano definido do que procuro. Não quero ir aos sítios onde estive antes e ver o que mudou. Prefiro que uma coisa me leve a outra. Para mim, este é um território novo", admite o fotógrafo, que chegou na passada sexta-feira a Macau e que aqui ficará até ao final do mês. Por enquanto, está mais atento aos casinos, já que, da última vez que cá esteve, só o velho Lisboa existia.
Uma coisa é certa. António Júlio Duarte não procura as diferenças entre os povos, mas mais as suas semelhanças. "Por mais que Portugal, Nova Iorque ou Macau sejam diferentes, às seis da tarde está sempre imenso trânsito e é sempre difícil encontrar um táxi".
Há quem lhe pergunte porque viaja ao outro lado do mundo para tirar uma fotografia que poderia ser captada na Amadora. Mas os prémios e o gosto de António dão-lhe razão. Não pensa mudar de estilo.
CAIXA
Chineses "de passagem" por Portugal
Chineses "de passagem" por Portugal
António Júlio Duarte vive os dias entre as aulas que dá no Instituto Português de Fotografia e na escola de artes Ar.Co, e os vários projectos que o fazem viajar em Portugal e fora do país. Sempre foi freelancer e hoje já acha que nem conseguiria fidelizar-se a um emprego fixo.
"Gosto de grupos minoritários, de temas minoritários". E um deles são as comunidades chinesas em Portugal, às quais consegue ter um acesso mais facilitado através da namorada chinesa. "São comunidades muito fechadas, viradas para o clã familiar. A segunda geração é mais aberta, mas não encontrei nenhum que se considerasse meio português". O fotógrafo adianta que é por isso que os chineses são mal entendidos em Portugal. Mas a verdade é que também não se dão ao trabalho de desmistificar mitos. "De um modo geral eles têm má opinião dos portugueses. Acham-nos preguiçosos e não têm grande vontade de se misturar. Aliás, mesmo que fiquem no mesmo país 20 anos, o chinês está sempre de passagem, nunca se entrega. Continuam a ser chineses até ao fim".
António Júlio Duarte considera que esta é uma das razões para nem se darem ao trabalho de aprenderem inglês. "Eles não precisam, nem vão precisar. Quem tem de aprender chinês são os europeus e os americanos".
Sobre a comunidade portuguesa em Macau é que António Júlio Duarte não tem opinião formada, admitindo não procurar retratá-los. A verdade é que os temas das suas jornadas fotográficas tentam ser metáforas da vida. "Estive um ano no mundo do boxe em Portugal, o que para mim representava o aumento da violência na sociedade. Os assuntos ligados à indústria do sexo também me atraem, porque vejo isso como escapes à normalidade do dia a dia, uma espécie de alienação social".
Não existem temas, locais ou pessoas que António Júlio Duarte deseje fotografar no futuro. Admite que vai onde a vida o vai levando. E já é assim desde o início. Quando era mais novo, queria seguir medicina. Ao entrar para a faculdade, decidiu que, afinal, era filosofia que o chamava. Voltou para trás, estudou outras matérias para se candidatar a novas escolas. E na noite anterior aos testes de admissão, fez uma directa que acabou na manhã seguinte à porta do Ar.Co onde tirou o curso de fotografia. Até hoje.
CAIXA
Europa versus Ásia
Europa versus Ásia
António não é homem de ter ideias pré-concebidas. Quando chegou ao Oriente, não estava à espera de nada. Encontrou um lado do mundo onde se sentia em casa, mas ficou também a entender que as ideias que os povos têm uns dos outros são muitas vezes erradas.
As europeus têm fama de serem stressados, organizados e civilizados. Os asiáticos de serem espirituais e tranquilos. Só mitos construídos, segundo António. "Os europeus estão adormecidos, quase mortos dentro daquela redoma que parece organizada, parece civilizada. Mas os asiáticos têm outra estrutura de pensamento, são mais práticos e até impacientes", desmistifica António acrescentando que "a calma e o espírito zen, que se crê que os orientais têm, são mitos construídos pelos Europeus".
CAIXA
Estilo duro de roer
Estilo duro de roer
António não tira fotografias politicamente correctas. Não é suave, não é delicado. A realidade é dura, e é assim mesmo que aparece nas suas imagens. Tudo isso poderia ser explicado pelo seu pessimismo. António não crê num futuro feliz para o mundo. Tem fé nas pessoas, mas não acredita que lhes seja dado espaço para mudar o curso do planeta. Esse pessimismo resulta em fotografias que só têm lugar em exposições.
"Não existe espaço para assuntos sérios nos jornais europeus. Cada vez que tento propor uma reportagem - e faço-o regularmente - a resposta que recebo é que são temas muito duros, que afastam os anunciantes. Hoje em dia os jornais estão totalmente vendidos à publicidade". A António resta-lhe a fotografia documental. "A fotografia é como vinho. Com o tempo torna-se sempre um documento do passado, um documento antropológico, sociológico", admite. São esses documentos que depois irão fazer parte de exposições ou de livros. Mas poucos de páginas de jornais. O que vale é que António nota haver cada vez mais interesse pelas exposições de fotografia da realidade, em detrimento da fotografia artística, que já esteve muito em voga.
António faz parte de uma geração de fotógrafos que procurou aprender e trabalhar no estrangeiro, vendendo também os seus trabalhos ao mercado internacional. Com ele, estão José Luís Neto, Augusto Alves da Silva e Paulo Catrica, hoje também fotógrafos de renome internacional.