31.1.08

CESÁRIA ÉVORA, RAINHA AFRICANA DA "WORLD MUSIC", NO CCM A 23 DE FEVEREIRO
“Se pudesse mudar uma coisa na minha vida
seria que o meu sucesso tivesse chegado mais cedo”


Cesária Évora é actualmente uma das maiores cantoras africanas e uma das poucas artistas da World Music a conseguirem transpor as barreiras do género e conquistar o grande público. Na França, vende álbuns às centenas de milhar, já arrecadou dois Victoire de la Musique (o Grammy francês), foi homenageada com a atribuição de uma medalha de “Officier des Arts et Lettres”, e habitualmente enche salas de concertos destinadas somente a grandes bandas pop e rock. Nada mau para uma mulher africana de pé descalço que só saiu de Cabo Verde aos 47 anos. “Durante todos aqueles anos em que cantava em bares à frente de estranhos por vezes tinha a ideia que um dia poderia vir a ter sucesso fora do meu país. A ideia nunca permaneceu comigo durante muito tempo, mas aqui estou,” lança Cesária num encolher de ombros, em reacção ao seu sucesso.
Esta atitude discreta e desapegada é, para o público que a conhece bem, uma imagem de marca da cantora cabo verdiana. Nos seus concertos, raramente dirige uma palavra ao público, e não é mulher de grandes sorrisos. Em Portugal, há quem a acuse de ser indelicada por um dia ter criticado o antigo país “colonizador”. Certos media ingleses e norte-americanos que assistem aos seus espectáculos descrevem-na como um pouco fria. Portugueses e anglo-saxónicos talvez não consigam compreender tudo o que Cesária passou, tudo o que ela representa, e que Cesária quando sobe ao palco, é para cantar os blues.
Estes blues de Cabo Verde – as “mornas” - falam de tristeza, melancolia e saudade, fruto da amarga história de subdesenvolvimento, isolamento e escravatura do país, mas também da emigração - cerca de dois terços da população destas ilhas do Atlântico vivem no estrangeiro. Apesar disso, os filhos de Cabo Verde ainda sabem sorrir, garante Cesária: “A personalidade de todos os cabo verdianos é dupla. Por um lado, ficamos tocados com a dureza de certas coisas, mas por outro, somos os primeiros a fazer a festa. Apesar das agruras da vida, somos um povo feliz e alegre”.

Famosa aos 47

Nascida a 1941 na cidade costeira de Mindelo, capital de São Vicente, Cesária Évora cedo compreendeu o lado duro da vida, perdendo o pai quando tinha sete anos, e passando dificuldades com a mãe, cozinheira que mal ganhava para sustentar sete filhos, o que levou a mãe a pô-la num orfanato. Aí, a pequena Cesária começou a cantar no coro, conhecendo depois aos 16 anos um marinheiro que lhe ensinou as tradicionais “coladeras” e “mornas”.
Cesária deu os seus primeiros passos nos palcos dos bares e hotéis locais, acabando, com a ajuda dos músicos de Mindelo, por ser proclamada a “Rainha das Mornas”. Nessa altura, em 1975, Cabo Verde conquistava a independência, pondo fim a cinco séculos de colonização portuguesa. Cesária Évora, embora já tendo atingido algum reconhecimento público, continuava a passar dificuldades financeiras. A sua problemática vida pessoal, associada aos vícios do álcool e tabaco, e a complicada situação política e económica que o país vivia levaram a cantora a abdicar da música para poder sustentar a sua família durante 10 anos da sua vida - a que ela chama os seus “anos negros”.
A cantora apenas acabou por retomar a sua carreira quando Bana, um conterrâneo exilado em Portugal, conseguiu arranjar uma série de concertos patrocinados, trazendo Cesária pela primeira vez a terras lusas. No entanto, ela apenas se lançou internacionalmente aos 47 anos de idade quando José da Silva, um jovem francês de origens cabo-verdianas, lhe lançou o convite de ir a Paris gravar o primeiro álbum. Hoje em dia, José da Silva permanece o seu produtor central e cúmplice, tal como o seu intérprete, que foi escolhido a dedo por Cesária e a segue para onde ela for.

Diva do pé descalço

“Diva aux pied nus” (1988) foi o despontar de uma carreira pontuada por muitos outros discos. Em 1990 saiu “Distino de Belita”, seguido da sua versão acústica em 1991. Foi neste ano que começou a surgir um “burburinho” em volta de Cesária graças a alguns concertos na França e artigos no Libération e na Radio FIP. Em 1992, “Mar Azul” e especialmente “Miss Perfumado” consagraram a cantora por terras gaulesas. No ano seguinte, enquanto “Miss Perfumado” continuava a conquistar as tabelas a caminho de se tornar num dos álbuns incontornáveis da World Music, Cesária actuava pela primeira vez no São Luiz, em Lisboa, onde a polícia teve de impedir a entrada de uma multidão de fãs. Em 1994, Caetano Veloso cantava com ela em São Paulo, e os concertos pelo mundo fora prosseguiam. Foi aí que, através da sua companhia discográfica Lusafrica, assinou contrato com a BMG.
A primeira nomeação para um Grammy veio com o álbum “Cesária”, em 1995, ano em que conquistou os Estados Unidos e que foi convidada por Goran Bregovich para gravar a canção “Ausência” para a banda sonora do filme “Underground” de Emir Kusturika. 1997 foi o ano da segunda nomeação para um Grammy com “Cabo Verde”. Em 1998, Cesária Évora lançou mundialmente o seu primeiro “Best of” e, em 1999, surgia mais um êxito, o álbum “Café Atlântico”. “São Vicente” (2001) foi a consagração definitiva da cantora como uma referência da “World Music”, juntando outros grandes nomes como a Orquesta Aragon, Chucho Valdés, Caetano Veloso, Conde Djeli Moussa e Bonnie Raitt. Em 2003, saía “Voz d’Amor”, ano em que Cesária Évora passou pelo Festival de Artes de Hong Kong. “Rogamar”, o seu último álbum lançado no ano passado, vai ser apresentado no concerto organizado pelo Centro Cultural de Macau, embora os seus fãs possam contar com vários dos seus clássicos como o eterno “Sôdáde”.

Travessa de Peixeira e caldo de peixe

O décimo álbum de Cesária Évora é, como se espera de alguém que viva rodeada de água, uma prece ao mar - “Rogamar”. “Eu adoro o mar, mas não sei nadar, e sempre tive medo das ondas. Habitualmente vou para perto do mar para conversar com ele”, confidencia Cesária. Para o repertório de “mornas” e “coladeras” do álbum, Cesária decidiu “pescar” em águas diferentes, deixando o porto seguro de B.Leza, e aventurando-se por outros compositores. “Um fruto do acaso”, explica. “Posso cantar canções tanto de compositores velhos como de novos. O meu critério reside na beleza das letras e melodias.” O homem por detrás de “Rogamar” é Fernando Andrade, o seu fiel pianista desde 1999, e que contou com a assistência do brazileiro Jacques Morelenbaum na produção do álbum. Em Macau, Cesária vai cantar canções de pendor marítimo como “Rogamar”, onde pessoas num barco pequeno em mar agitado rezam à Virgem Maria, ou “Travessa de Peixeira”, onde cabo verdianos continuam a lutar contra as intempéries, mas em terra. Cesária Évora descortina a ideia por detrás das letras de “Travessa de Peixeira”: “Num colde d’pêxe é um caldo de peixe, mas também é uma expressão cabo verdiana que significa estar falido. No princípio dos anos sessenta, os imigrantes que trabalhavam na Holanda transitavam, de bolsos recheados, por Lisboa antes de voltarem a Cabo Verde. Enfim...isto desde que não fossem à Travessa de Peixeira para percorrerem os bares e ficarem sem dinheiro!”
Cesária Évora, tal como a maioria dos naturais do arquipélago de 10 ilhas, trabalha no estrangeiro, mas não se perde em travessas de peixeiras, e quando retorna à sua cidade natal de Mindelo, cidade onde ainda reside, é como se de lá nunca tivesse saído. “Não fico impressionada com todas estas cidades grandes”, diz. “Apenas têm mais recursos do que Cabo Verde, é só isso. “Se pudesse mudar uma coisa na minha vida seria que o meu sucesso tivesse chegado mais cedo.”

(Texto do Centro Cultural de Macau)

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