23.1.08

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA E VÍDEO DE ALICE KOK AMANHÃ NO CENTRO DE INDÚSTRIAS CRIATIVAS
O karma das famílias separadas

Durante nove meses, Alice Kok serviu de mensageira entre famílias tibetanas separadas pela fronteira chinesa. Quem foi para a Índia procurava uma vida melhor. Mas não teve volta. Há vinte anos que as famílias não se vêm. E a esperança no futuro é pouca

Marta Curto

A Índia não lhe saía da cabeça. A Índia e o Tibete. Alice Kok nascera em Macau, mas fora estudar Belas Artes em França, para aperfeiçoar a arte da fotografia com que escolhera ilustrar o mundo. E no fim do curso, os dois países gritavam-lhe do outro lado do mundo.
Alice sempre se deixara fascinar pela espiritualidade, e o budismo parecia ter o poder de lhe dar muitas respostas. Foi para o norte da Índia, no sopé dos Himalaias, uma zona onde os mosteiros budistas ensinavam quem quisesse aprender. Aprendeu.
Lá, viu também anúncios de acções para voluntários. Podia ensinar inglês. Mostraram-lhe um pequeno atelier, onde um grupo de mulheres se inclinava diariamente sobre tapetes, que seriam depois vendidos no Japão. Seriam as suas alunas.
Alice ainda não sabia, mas essas mulheres mostrar-lhe-iam o caminho do seu maior projecto artístico. O resultado estará em exposição a partir de amanhã no Centro de Indústrias Criativas, no Centro Cultural de Macau. É um conjunto de fotografias e vídeos que ilustram o drama das famílias separadas pela fronteira chinesa. Uns na Índia, outros no Tibete. Vinte anos sem se verem. E um futuro sem esperança de alguma vez se voltarem a ver.
Alice Kok foi à Índia para melhor conhecer o Budismo. Acabou por servir de mensageiro entre as famílias separadas. Filmou as famílias que faziam tapetes na Índia, e levou as imagens ao Tibete, às famílias que teriam ficado na China. De crianças que haviam partido ilegalmente, passando os Himalaias a pé, surgiam homens e mulheres feitos no ecrã. Chorou-se, cantou-se, esperou-se por melhores dias em que a saudade teria mais do que um frio monitor para se sufocar. Depois, Alice filmou as famílias no Tibete e regressou com as imagens ao atelier indiano, onde os refugiados tibetanos a esperavam.
No início, a fotografa intitulou o projecto de "Ainda no exílio". Os nove meses que passou a servir de mensageiro de boas imagens chegaram-lhe para dar outro nome à experiência: "Cartas de Família". Em exposição até dia 13 de Fevereiro.

Dos Himalaias aos lamas, tecendo tapetes

"As mulheres teriam 40, 50 anos. Tinham passado os Himalaias para ver o que haveria do outro lado da montanha, para aprender, ser alguém na vida. Era uma viagem dura. Passavam em grupos, já aquilo estava bem organizado na altura, há 20 anos, quando as mulheres eram meninas ainda. Muitos terão morrido naquelas montanhas". Eram mulheres simples que teciam os tapetes, dia após dia. Não tinham ambições políticas, nem disso entendiam. Mal liam, mal escreviam. Era costume, já naquela altura, enviar um dos filhos para a Índia. Aprender-se-ia mais sobre a religião budista, ouvir-se-iam os Lamas, quem sabe até se veria o próprio Dalai Lama. As mães só queriam que um dos filhos tivesse uma vida melhor. Enviavam-nos porque Budismo era sinónimo de saber, que por sua vez era sinonimo de respeito social. Se alguma razão tiveram para sair da China ilegalmente foi religiosa.
"Nem pensavam se voltariam ou não, ia-se ver um mundo novo, melhor". Mas chegados à Índia foram considerados refugiados e a fronteira da China fechou-se. A Índia recebeu-os, os monges budistas ensinaram-nos. "Mas eles não são felizes, o que eu mais senti foi uma enorme frustração. Eu acho que eles voltariam a viver no Tibete só para estarem com a família". Sim, têm mais acesso aos lamas, mas tecem todos os dias, há 20 anos. "Queixam-se da vida chata que têm, mas penso que o maior problema é ser quase impossível voltarem a ver as famílias".
O pedido de visto para a China só é permitido uma vez por ano. Há quem o requeira todos os anos. E todos os anos o veja ser recusado. A única - remota - possibilidade de voltarem ao Tibete é imigrando para outro pais, conseguirem um passaporte de outra nacionalidade e tentarem depois entrar na China. Mas nem é isso certo.
"Eu vi-os naquela saudade e pensei que podia fazer alguma coisa. Eu podia ir ao Tibete, e eu tinha uma máquina de filmar. Podia filmá-los, ir ao Tibete, encontrar as famílias deles e mostrar as imagens". A alegria que Alice sentiu ao fazer a proposta àquelas mulheres confirmou-lhe a vontade.
Onze famílias aceitaram ser filmadas. Outras negaram-se por duvidar da boa vontade de Alice e por considerarem o acto demasiado perigoso. Quem foi filmado não chorou. Mas riu, e cantou. Todos disseram que estavam bem, para que os familiares não se preocupassem. Apresentaram filhos e maridos ainda desconhecidos aos pais e irmãos que haviam ficado na China. Estavam felizes e confiavam em Alice. "Também não tinham nada a perder. Se eu conseguisse era bom. Se não, nada mudava".
Em vinte anos os únicos contactos que se faziam além fronteiras eram telefónicos. E isto para os mais afortunados, já que muitas famílias viviam em ermos tibetanos, que nem agua ou luz tinham, quanto mais telefone. As indicações dadas a Alice eram confusas e escritas em tibetano. Diziam para chegar a uma cidade, daí seguir para norte durante três dias e depois virar para este que seriam mais dois dias de viagem. Alice estava sozinha e estava-se no período mais frio do ano. Nem havia garantias que a neve deixasse passar um carro. "Mesmo assim pedi-lhes que me escrevessem as indicações todas num papel. Eu haveria de chegar às onze famílias".

Em busca de onze famílias tibetanas

A primeira indicação que tinha era em Lhasa, capital do Tibete. Estaria lá o pai de uma das mulheres. Fora o último a entrar na lista. A filha estava zangada, não queria nada com ele desde que ele largara a sua mãe e constituíra nova família. Mas no ultimo dia de Alice, aquela mulher chamou-a, disse que mudara de ideias, que gostava que o seu pai visse os netos. O homem demorou a entender quem era Alice e o que vinha ali fazer. Nem podia acreditar que a sua filha quisesse algum contacto com ele. Chorou durante o filme todo.
Todas as famílias choraram. A idosa que se deixou levar pelas imagens e acabou por andar o dia inteiro de mão dada a Alice, dando-lhe o nome da filha que estava na Índia. As quatro irmãs que haviam visto partir o mais novo pelos Himalaias. Quando o voltaram a ver no ecrã era homem feito, 40 anos completados. Perguntaram-se onde teria ficado o menino que nunca mais haviam visto.
"Foram momento mágicos. Aquelas pessoas nunca mais tinham visto os irmãos, os filhos. Lembro-me que uma das filmagens era de um homem que não falava durante o filme todo. Só tocava e cantava. Quando a família dele viu aquilo chorou imenso, e acabou a cantar com ele".
Aquelas famílias trataram-na como filha, tal era o agradecimento. Havia vilas que tinham uma televisão e um gerador, mas havia quem nem isso tinha. Acabaram por ver os familiares no pequeno monitor da máquina de filmar de Alice. "Cada vez que eu via uma tomada eléctrica carregava as baterias da máquina. Tinha medo de não encontrar electricidade durante muito tempo". A viagem não foi fácil para Alice. Passou dez dias sem ver água. Ao 11º dia, encontrou enfim balneários públicos, para descobrir que tinha alergias pelo corpo todo. No caminho, encontrou um rapaz chinês que acabou por abraçar a causa e acompanhou-a o resto da viagem. Mas nem este lhe valeu no final da viagem, quando a ultima família parecia impossível de encontrar.
"O contacto telefónico que eu tinha não funcionava e nós estávamos numa localidade com centenas de pessoas. Eu só tinha o apelido de um irmão da mulher que estava na Índia". Alice foi perguntando a quem passava na rua se conhecia alguém com tal nome. Acabaram por mandá-la para um rua do lado esquerdo. "Quando íamos virar, eu vi uma casa de chá tibetana do lado direito. Tive uma intuição que tinha de ir ali. E lembro-me perfeitamente de o meu amigo me dizer que não, tínhamos de ir para a esquerda, para onde nos tinham mandado". Mas Alice seguiu-se. Entrou na casa de chá e perguntou ao homem que estava atrás do balcão se conhecia o irmão daquela mulher. Era ele.
Quando Alice retornou à Índia, contou a historia ao familiar do homem da casa de chá. Ele sorriu e disse que isso era karma. As famílias pertenciam ao mesmo sítio, e encontravam sempre uma forma de se juntarem. Mesmo com as fracas indicações que tinha, Alice encontrou as 11 famílias do Tibete.

Índia, onde se diz estar a felicidade

Quando os rostos das famílias deixadas para trás surgiram no ecrã já não se cantou no atelier indiano. Chorou-se. O atelier era também casa, e acabavam por viver todos em comunidade. Toda a gente viu as 30 horas de filmagens que Alice fez no Tibete. Os de lá mandavam saudades, mas também diziam que estava tudo bem, que não se preocupassem, que vivessem as suas vidas, educassem os filhos, fossem felizes. E por escassos momentos, meros minutos, voltaram a reconhecer-se olhares, sorrisos, mãos. Era tudo o que tinham para matar saudades. Um ecrã de televisão. Mas era muito mais do que alguma vez tinham tido em 20 anos de separação.
"Qualquer exposição de um artista é uma declaração. Eu não quero que esta seja uma declaração política. Não quero que as pessoas se revoltem, nem que tenham sequer reacções sociais. Só quero que sintam a tristeza, a saudade de estar separado da família durante 20, 30 anos. De saber que talvez nunca mais lhe tocarão. E a alegria de os verem na televisão, passados tantos anos, já homens e mulheres feitas".
Durante os nove meses em que Alice viajou, perguntou-se sempre porque estava a fazer aquilo. Seria para investir no maior projecto artístico da sua vida? Ou para servir de algum conforto aquelas pessoas?
E a resposta foi sempre altruísta.
Ainda hoje, passam milhares de tibetanos pelos Himalaias para chegar à Índia, onde se diz estar a felicidade.

Edições Anteriores

Arquivo

DIRECTOR Paulo Reis REDACÇÃO Isabel Castro, Rui Cid, João Paulo Meneses (Portugal); COLABORADORES Cristina Lobo; Paulo A. Azevedo; Luciana Leitão; Vítor Rebelo DESIGN Inês de Campos Alves PAGINAÇÃO José Figueiredo; Maria Soares FOTOGRAFIA Carmo Correia; Frank Regourd AGÊNCIA Lusa PUBLICIDADE Karen Leong PROPRIEDADE, ADMINISTRAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO Praia Grande Edições, Lda IMPRESSÃO Tipografia Welfare, Ltd MORADA Alameda Dr Carlos d'Assumpção 263, edf China Civil Plaza, 7º andar I, Macau TELEFONE 28339566/28338583 FAX 28339563 E-MAIL pontofinalmacau@gmail.com