27.1.08

PRIMEIRAS JORNADAS DE DIREITO E CIDADANIA DA AL
Dedo na ferida

Há uma linha comum nas jornadas de direito da AL: a administração da justiça deve ser mais comedida. O arguido tem de ver respeitado os seus direitos e a obtenção de provas tem de seguir essa norma. Neto Valente defende a criação de prazos para o CCAC concluir a investigação e Redinha está contra o alargamento do órgão à esfera privada.

Sónia Nunes

Não será difícil provar que a ausência de prazos para concluir uma investigação no Comissariado Contra a Corrupção (CCAC) viola a Lei Básica. A observação foi feita pelo presidente da Ordem dos Advogados, Jorge Neto Valente e vai mais longe. Mesmo que a Assembleia Legislativa – a braços com a petição de João Miguel Barros – entenda que a lei orgânica do comissariado está de acordo com a mini-constituição, deve impor um limite de tempo para a perícia criminal.
“Deve haver prazos. É próprio dum sistema civilizado. Uma pessoa fica numa situação de suspeito, de fragilidade, sem um fim à vista. A partir do momento em que se declara que alguém é suspeito, tem de haver um prazo para se acabar com o processo”, defende Neto Valente. A posição assina por baixo a petição entregue pelo advogado João Miguel Barros aos deputados. O documento alega que o facto de o CCAC não ter de cumprir os prazos impostos pelo Código de Processo Penal (CPP) contradiz desde logo o direito ao bom nome e reputação que assiste a qualquer residente da RAEM - na próxima terça-feira, a 3ª Comissão Permanente da AL vai debater o caso.
“Há muitas probabilidades de isto violar a Lei Básica. O enunciado do Pacto dos Direitos Civis e Políticos é muito vago. Mas é suficiente dizer-se que toda a gente tem direito a um julgamento rápido. Dizer que esse prazo pode ser de anos ou indefinido, não é prazo”, destacou o presidente da Associação dos Advogados. Pode ainda ser invocada a Declaração Universal dos Direitos do Homem. E caso os deputados entendam que a excepção permitida ao CCAC, em termos de tempo para a investigação criminal, se rege pela norma jurídica tal não deve bloquear uma mudança: “A AL devia alterar a lei no sentido de fixar claramente um prazo”, avança Neto Valente.
O advogado sublinha que aos legisladores e juristas convêm ter presente a noção “da inocência de um individuo até ser condenado” e que “o princípio fundamental é o da liberdade e não o da prisão”. Porém, a mesma lei pode levar a condutas diferentes no limite dos prazos para a investigação criminal. O CPP prevê um limite de seis a ou meses para se por termo ao trabalho – uma norma já superior ao código de Portugal (que baseou o diploma da RAEM) por ter em conta obstáculos ao processo como a tradução de documentos. A definição de um prazo trata-se de “política legislativa” e “é muito discutível”, entende Neto Valente. “Há crimes muito complexos e difíceis de investigar com um prazo não alargado. Mas não deve ser esta a regra geral e os processos ficarem adormecidos ad eternum”, reiterou.
Caso a AL dê luz verde à petição de Miguel Barros resta saber quando é que a nova lei orgânica para o CCAC entraria em vigor. “Seria injusto apresentar uma solução nova e dizer que ela não se aplica aos casos pendentes. Mas é razoável não se aplicar no mesmo dia”, sugere o advogado. Neto Valente defende, portanto, um período de transição.

CCAC deve ser limitado, defende Redinha

“Não faz qualquer sentido um alargamento das competências do CCAC. Se se limitasse a exercer as competências que lhe estão legalmente atribuídas, já seria bastante positivo”, entende o advogado Pedro Redinha. Durante as Linhas de Acção Governativa para 2008 foi proposto que o órgão de investigação criminal também actuasse na esfera privada. O advogado critica a medida e não tem pejo em dizer que o CCAC deve ficar limitado às matérias de corrupção de actos públicos.
“O CCAC deve ser uma instituição paralela às outras que estão mais vocacionadas para a investigação criminal. A Polícia Judiciária deve ter as competências de investigação de quaisquer outros crimes”, destaca Redinha. O advogado defende ainda que o comissariado deve ficar-se pelas fases de investigação e de inquérito e não ter qualquer investida no julgamento. Um investigador do CCAC pode ser testemunha numa audiência, mas “não pode de modo nenhum transmitir as declarações produzidas pelos arguidos e testemunhas que ele tenha recolhido no exercício das suas funções”, ressalva.
A actividade do CCAC não tem que ver com um excesso de poderes. Depende antes “da maneira como os utiliza”, distingue Neto Valente. “A maneira de combater a corrupção tem de ser à bomba atómica, a tiro, com algemas, com enxovalhos?”, projecta o advogado. Os excessos ganham especial relevo numa região pequena como Macau, onde todos se conhecem. “Mesmo que uma pessoa venha a ser absolvida, da suspeita não se livra. Mesmo que o CCAC não revele o nome das pessoas, a verdade é que se se sabe quem é”, acusa.
Na mesma linha que Costa Andrade, que palestrou nas Jornadas de Direito e Cidadania da AL sobre a validade da prova em processo penal, Neto Valente lamenta que o CCAC, ao contrário do que acontece em Hong Kong, não dê aos advogados um registo áudio-visual que reporte o que aconteceu na sala de inquérito. Em Macau o registos chega à defesa já na fase da acusação e a gravação é apenas sonora.
“A gravação de som e imagem é uma renovação integral do que se passou. Não há nada a esconder. Vê-se muito bem que não estão a torcer o braço à pessoa, a atirar com luz para os olhos, a exercer pressões ilegítimas”, indica o advogado. Apesar de nunca ter tido acesso a uma cassete de inquérito do CCAC, Neto Valente é taxativo: “A
confissão é a rainha das provas”.
O suspeito é questionado, nesta fase, sem a presença do advogado. Para haver uma alteração implicaria que os investigadores aumentassem a capacidade de trabalho já que “a maneira mais fácil é apanhar um suspeito e obrigá-lo a contar a história. O pior é se a pressão exercida for tal que ele é levado a dizer coisas que não são verdade, e ser condenado por isso”, observa o advogado.
O inquérito é assim feito em segredo e sem que o suspeito possa constituir um representante legal. “Quando chega a um advogado o dano já está causado e os seus direitos violados. O código só dá essa protecção ao arguido e não ao cidadão”, critica Redinha. Os prejuízos à defesa agravam-se quando o causídico, sem ter acesso à documentação que ditou a prisão preventiva, “tem de recorrer a palpites” para interpor um recurso que ataque com força o despacho do tribunal.

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Redinha saudoso do
código da velha senhora de 1929


O antigo Código de Processo Penal (CPP), que foi substituído em 1996, e aos primeiros anos da ditadura portuguesa oferecia mais protecção aos arguidos, defende o advogado Pedro Redinha. As violações aos direitos humanos do regime político de Salazar não estava no CPP de 1929: “Depois das reformas, consagrava todo um conjunto de soluções em que era muito mais fácil defender um cidadão a quem é feita uma imputação criminal”, esclarece o causídico.
Pedro Redinha critica sobretudo o facto do CCP, aprovado em Portugal em 1996, ter sido estendido a Macau sem haver diálogo com os advogados locais. “Estou totalmente em desacordo com todo um conjunto de soluções legais que foram consagradas foi um código feito extremamente à pressa”, acusa o advogado. O processo, continua, foi assim porque a Administração Portuguesa teve a “preocupação lamentável” de não deixar Macau sem nova legislação. “Quis com isso lavar a face pelo facto de nunca se ter preocupado com a adaptação dos códigos”, acrescenta Redinha.
De acordo com o código actual (que está a ser revisto pela Assembleia Legislativa), os prazos de prisão preventiva, até haver acusação, podem ir de seis a oito meses. Ora, há umas décadas contavam-se quarenta dias para o arguido ser acusado ou libertado, compara Redinha.
Outra das lacunas do CPP em vigor prende-se com o julgado penal: quando a defesa quer demonstrar que o arguido está a ser julgado por um crime pelo qual já foi sentenciado, num tribunal de outro pais. E “tropeça neste terrível drama de não haver regulamentação do julgado no nosso CPP. Se
não me removem este código rapidamente (ou se não introduzem regulamentação) esta situação vai repetir-se permanentemente”, ilustra.
Há ainda outra mancha jurídica, que o advogado tentou limpar, em conjunto com parte da classe, num encontro com o presidente português, à época da transição, Jorge Sampaio. “Aquilo que mais me fere foi o facto da antiga Administração ter estendido a Macau o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e não fez o essencial: tornar extensível a Macau o protocolo de direito de queixa individual de um cidadão perante um tribunal internacional”. Resultado: a RAEM é membro do PIDCP mas não dá aos residentes o mecanismo para poderem recorrer ao diploma.
A revisão do CPP, que está a ser preparada pela Assembleia Legislativa, é “urgente”. E as Primeiras Jornadas de Direito e Cidadania têm o mérito de despertar as “sensibilidades” do processo penal, remata, o advogado.

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Isto em Portugal não acontecia

O Tribunal de Última Instância aceitou como válidas as provas recolhidas na residência oficial do ex-secretário Ao Man Long (que aguarda sentença), sem que a busca tivesse sido feita na presença do suspeito ou de alguém da sua confiança. “Essas provas, em Portugal, seriam nulas”, comentou o professor catedrático de direito processual penal de Coimbra, Manuel da Costa Andrade. O académico ressalvou que não criticava Macau - seria “deselegante como estrangeiro”- mas cingiu-se à lei: “As buscas tem de ser autorizadas por um juiz e a pessoa tem de estar presente. É um facto”.
Costa Andrade traçou ontem os conflitos entre a liberdades e garantias dos cidadãos e os métodos de obtenção de prova criminal, ancorando-se em Portugal: violação de correspondência, escutas telefonias e buscas domiciliares são algumas das arestas em conflito.

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Isto na China é assim

O direito processual penal da República Popular da China não permite que o arguido fique em silêncio em tribunal. O acusado só pode usar do privilégio de não se auto-incriminar quando se entender que a pergunta não importa para o processo – o que é raro de acontecer. “Obviamente que o investigador nunca vai considerar que as suas questões não são relevantes”, lançou o professor da Universidade de Tsinghua, Yi Yanyou.
O académico apresentou os conflitos entre a necessidade de combater o crime e o respeito pelos direitos humanos. Apesar de a lei da RPC ditar que as declarações dos suspeitos não podem ser obtidos por “forte uso da força, coação ou sedução” continua a ser vedado ao arguido o direito de não responder ao inquérito. “Há melhorias na China, mas nas zonas mais remotas, do campo, se o suspeito não disser nada e lhe for extraída uma confissão, por uso da força, os investigadores seriam recompensados”, revelou o académico.
Yi Yanyou reportou ainda que na China os advogados estão proibidos de falar com o arguido sobre o processo antes da fase de audiência. “Têm de falar sobre o estado do tempo”, afirmou. Contudo, o professor confia numa nova vaga em há já “uma tentativa de proteger o arguido” e se procura equilibrar a necessidade do suspeito em colaborar com a investigação e limitar os “excessos de poder da autoridade”.

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Crime de riqueza injustificada
contraria Lei Básica


O confisco do património relativo a crimes não pode ser feito a todo custo. “Há limites num Estado de direito, em que a dignidade humana é respeitável e não pode haver métodos intoleráveis de prova nem inversão do ónus da prova”, defende o professor da Universidade de Macau, Jorge Godinho.
O crime de riqueza injustificada, que faz parte da acusação contra o ex-governante Ao Man Long, é um exemplo. É contrário à Lei Básica, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Humanos e colide com o princípio da presunção de inocência, defende o académico, com a ressalva em como não se está a referir a um caso que está a ser julgado em Macau, mas “a normas que em certos países foram por vezes declaradas inconstitucionais”.
O crime de riqueza injustificada implica que seja o funcionário público a demonstrar a origem (lícita) dos bens. “É transparente a interpretação de que se ele nada fizer, não explicar de onde vieram aqueles bens, incorre em pena de prisão, pena de multa e confisco do património em causa”, esclarece Godinho. Há aqui uma inversão do ónus da prova. É ao tribunal que compete decidir de há ou não crime. Neste caso faz-se o contrário: “Parte-se do principio que há crime e o que se discute é se há ou não licitude. E é o arguido que tem de o demonstrar”, conclui o professor.

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