Arquitecto e designer Nuno Soares dirige workshop
Caprichos democráticos
do design de móveis
O conceito de design de móveis criado pelo arquitecto Nuno Soares – que lhe vale este ano o regresso à feira anual italiana, o Salone Satellite - está a ser explorado num workshop que pôs os 12 aprendizes do “constrAction” a projectar e dar forma a uma peça útil para a casa. Personalizada e feita com materiais de construção civil, torneiras ou painéis publicitários da cidade. Os melhores trabalhos também serão expostos já em Maio no Centro de Indústrias Criativas
Sónia Nunes
Caprichos democráticos
do design de móveis
O conceito de design de móveis criado pelo arquitecto Nuno Soares – que lhe vale este ano o regresso à feira anual italiana, o Salone Satellite - está a ser explorado num workshop que pôs os 12 aprendizes do “constrAction” a projectar e dar forma a uma peça útil para a casa. Personalizada e feita com materiais de construção civil, torneiras ou painéis publicitários da cidade. Os melhores trabalhos também serão expostos já em Maio no Centro de Indústrias Criativas
Sónia Nunes
O arquitecto Nuno Soares chegou em 2003 a Macau e viveu seis meses num apartamento (que divide com a designer Filipa Simões) sem mobília. Estava concentrado no desenvolvimento de um novo sistema para construção de móveis: peças que fossem flexíveis, encaixassem umas nas outras, e saíssem do quotidiano da cidade. Como os contraplacados vermelhos dos estaleiros do Porto Interior, as tábuas de cortar peixe dos mercados ou os escadotes dos pintores que, combinados, podem dar uma estante. Um conceito que ganhou corpo quando recebeu um telefonema de uns familiares a marcar estadia no território.
“Dali a 15 dias íamos ter visitas. Não as podia receber com um colchão e uma mesa. Começámos a construir todas a peças, depois do trabalho. Vimos que o sistema era muito prático, fácil e rápido de concretizar. Os materiais têm muito boas condições mecânicas para a função que vão desempenhar e plasticamente são muito bons”, conta Nuno Soares. Com o imprevisto materializou-se o estudo de dois anos e nasceu a linha “constrAction”. O conceito de design de imobiliário foi apresentado pela primeira vez na mostra de 2005 da Experimenta Design de Lisboa, um ano depois chegou à Id Expo de Hong Kong e, em 2007, foi seleccionado para o Salone Satellite, o salão internacional de imóvel em Milão. Este ano, o arquitecto regressa à feira italiana – que arranca a 16 de Abril – mas não quer ainda revelar o que pensou para a exposição.
O sistema estruturado por Nuno Soares está a ser explorado numa oficina de formação que foi instalada ao lado da praça do Tap Seac, no espaço Tong Hei Kok, e que recebeu as inscrições de 12 alunos. A convite do Centro de Indústrias Criativas, o arquitecto assumiu o papel de professor e apresenta “um sistema de design e construção de peças essenciais de uma habitação, utilizando materiais de construção de Macau e um sistema métrico modular que organiza cada peça e permite múltiplas associações e interacções entre os vários objectos”, define Nuno Soares. O esquema simples que pode ser posto em prática em 15 dias é, reconhece, também senhor de uma “concepção complexa”. No plano do arquitecto, cada objecto urbano pode ser adaptado à vontade do utilizador (das suas necessidades) que é aqui convidado a desenhar e construir os seus móveis e a assumir as peças que encontra no dia-a-dia da cidade como fonte do processo criativo. A linha de construção não tem limite de peças, é aberta: “dialoga com o contexto na concepção de suportes de comportamentos quotidianos”, destaca.
A conversa do artista com os elementos da cidade parece, por instantes, aproximar-se dos princípios dos surrealistas. “As vigas para a construção das confragens, aquelas caixas de madeira que vão receber betão armado, têm um potencial plástico e mecânico enorme, se os materiais forem usados num contexto diferente”, ilustra.
“O constrAction resolve”
Em três anos, o “constrAction” já se espelhou em três séries: “Beams” (vigas), “Containers” (caixotes modulares); e “Pipes” (aço). E há mais uma: os “Outsiders”, “os objectos da cultura urbana, as escadas de pintores ou as tábuas para cortar o peixe que são tiradas de um contexto e incorporadas noutro”, refere Nuno Soares.
Em “Beams” todas as estruturas são feitas com vigas de madeira, num jogo entre planos horizontais e verticais feito entre contraplacados. “O que tem muita piada é que em Macau a tipologia dos estaleiros é diferente: são vermelhos e pretos. Aqui [no workshop] nada é pintado. Os materiais têm uma plasticidade própria e são à prova de água”, descreve. A série “Containers” apresenta caixotes polivalentes que se associam entre si; e “Pipes”, a reciclagem de aço galvanizado, permite a criação de “estruturas muito resistentes que podem ser usadas no exterior, casas de banho ou cozinhas”, exemplifica.
As três linhas assentam num sistema métrico, “baseado na unidade três”, em que todas as peças são feitas segundo medidas padrão, por forma a facilitar a inter-relação entre os móveis e a associação, entre outras, de uma cadeira a uma mesa. Tudo isto foi explicado aos formandos, ao longo das quatro sessões que antecederam o módulo “Desenha e constrói a tua mobília” – fase em que os formandos se encontram agora. Nas aulas anteriores ao trabalho prático, o formador fez uma resenha da história internacional do design e lançou os “exemplos de excelência do século XX”, das grandes cadeias como o Ikea aos orgulhos do imobiliário chinês.
“Neste Workshop cada um tem de construir uma peça de acordo com as suas necessidades. O que nós fizemos foi organizar a liberdade criativa e apresentar ferramentas. O constrAction resolve; é um prontuário de soluções”, indica Nuno Soares.
A turma reúne arquitectos, designers, professores, “gente com formação de base muito diferente que aceitou o desafio e fez peças originais”. O mentor do projecto não deu desenhos para os projectos e, realça, o conceito inicial não foi desvirtuado pelos aprendizes: “Não fizeram cópias; as peças são um reflexo dos autores, mas identificam-se com os construtores. Esta formação serviu sobretudo para mostrar que o design não é só para eleitos”, avalia.
A democratização da arte adivinha ainda outro resultado: “As casas parecem um catálogo do Ikea; aqui aprenderam a adaptar os móveis às suas necessidades. Não digo que vão desatar a construir peças em casa, mas se calhar quando desenharem um móvel para ser construído numa oficina de Macau vão ter o que aprenderam em conta”, avança. Afinal, remata, o homem também tem caprichos individuais que nem sempre consegue satisfazer nas grandes lojas: “Um amigo pediu-me para eu lhe fazer uma mesa para ele trabalhar no sofá. Chamei-lhe Lazy Working Table. Numa posição dá para pôr os pés em cima, depois abre-se e é uma secretaria para o computador”. O apartamento de Nuno Soares e Filipa Simões é hoje um catálogo do constrAction: “uma casa cheia de protótipos, uma experiência em construção”, conclui.
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Formandos criam móveis com base no sistema de Nuno Soares
Interpretação dos novos marceneiros
A oficina improvisada no espaço Tong Hei Kok tem o cheiro das carpintarias, da madeira em bruto que lança pistas para um acto de construção. Os tímidos berbequins perfuram as tábuas e lançam uma fina espiral de farripas que se acumula nas mãos, nos ombros, e se espalha pelo chão. Nuno Soares, o formador, espreita os aprendizes que amiúde lhe pedem ajuda. “Faz só o primeiro furo que nós depois fazemos o resto”, negoceiam as construtoras de um ambicioso armário. O arquitecto saca de um esquadro, fala de equilíbrio da estrutura, da arte de não “moer a cabeça do prego”, cede no pedido das alunas e dispara: “Agora é convosco”. O berbequim volta a atacar, desta vez mais certeiro.
Por detrás do vidro que separa o espaço daquilo que parece ter sido uma sala de recepção, adivinha-se a primeira transformação da ideia em matéria. Um lápis marca metodicamente sinais numa placa de madeira preta, enquanto os olhos confirmam as inscrições com o desenho do projecto. Mais umas sessões e nasce a mesa de cabeceira que a Leitora de português, na Universidade de Macau, Ana Sofia Carvalho, sempre quis ter.
“Pensei numa questão muito utilitária. Precisava de uma mesinha de cabeceira que fosse simétrica – gosto muito de simetrias – e engraçada. É alta e, como diz o Nuno, tem a forma de labirinto”, descreve a docente. A peça constrói-se num ziguezague feito a régua e esquadro e recebeu o nome “Fingers”, uma referência ao objecto do quotidiano feminino, a esponja de dedos que ajuda pintar as unhas dos pés. “Imagino uns sapatos aqui, uns livros aqui; aqui fica o copo de água, aqui revistas”, indica Ana Sofia Carvalho enquanto aponta no desenho e sobe com o lápis do primeiro intervalo até ao topo da mesa. E avança: “Se virar, na horizontal, tenho uma estante. Dá para usar estes espaços para pôr revistas ou livros. É multifuncional. Parece que absorvi esse conceito, apesar de não concordar muito com ele; melhor, com o seu uso extremo”, revela.
A professora tomou o gosto pela talha dos móveis em casa. “O meu pai tem uma oficina, é marceneiro nos tempos livres. Aprendi a trabalhar com madeiras. Gosto muito de mobília e de trabalhar com as mãos”, diz. O projecto “Fingers” só sofreu umas ligeiras correcções de Nuno Soares. A estrutura, conta Ana Sofia Carvalho, teve que ser tapada em alguns dos lados para ganhar equilíbrio. O conflito entre a necessidade de alteração e a vontade em manter o conceito foi resolvida com a cor natural das madeiras. “A mesa é em preto. Vou usar a madeira branca para marcar a profundidade”, refere.
O gozo do workshop está sobretudo no convite à construção de uma coisa pessoal. “Não é um princípio muito artístico mas gosto de aprender a fazer uma coisa prática, gosto da ideia de design: sentir que fui eu que fiz uma peça que é útil. É muito, muito bom. É um tempo porreiro, quando se concretiza um trabalho”, avalia. A aluna entrou na sessão a dizer que estava de saída. Achava-se indisponível para a tarefa. Porém, o “bom professor” convenceu-a a ficar quando lhe mostrou uma bitola, um instrumento que mais nenhum aluno tinha para fazer as marcações na madeira. “Conseguiu-me dar a volta”, assume. A professora sorri e fecha-se ao mundo para voltar a inscrever o lápis na tábua preta.
Roberto Osório é funcionário no Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais e passa a mão pelas gotas de suor que tem na testa. “Tive esta ideia há seis meses mas não sabia como acabá-la. Não fazia ideia de como é que iria juntar estes tubos para ficarem seguros e estáticos”, afirma enquanto aponta para uma cadeira de repouso, feita de canos de plástico branco, unidos por uma fita amarela, daquelas que costumam manter presos os materiais de construção civil. A “Pipe Chair” já está concluída. Foi construída entre o meio-dia e as seis da tarde de Sábado.
“Vi o anúncio do workshop no jornal. Em casa faço muito destas coisas mas tenho muitas dúvidas. Preciso de mais aulas para aprender a ligar melhor os materiais e a fazer as coisas de forma mais rápida”, entende. Na folha desenhada por computador há seis meses, a “Pipe Chair” já amontoava os tubos brancos na forma de uma cadeira e avançava com medidas de largura e comprimento. Parecia obra de uma simples colagem do material. “Não sabia como unir as peças do ponto de vista técnico. Não sabia resolver estas questões. Aqui aprendi mais sobre a escolha dos materiais e o uso que podemos usar às estruturas. Tem sido muito interessante construir e aprender a construir”, observa Roberto Osório.
As melhores peças da formação serão expostas no Centro de Indústrias Criativas a 23 de Maio. A iniciativa é um estímulo e um prémio de trabalho, destaca, mas não será um convite à produção de móveis para o público : “Fiz esta cadeira e gostei. Porém, para fazer a segunda já estou cansado. Não estou disponível para isso”, sublinha. Os objectos de decoração assinados por Osório, as estantes, os candeeiros, os bancos, são para as exigências quotidianas do artista e são para ficar em casa.
A indicação de Nuno Soares em como as peças espelhavam a personalidade dos formandos ganhou forma na cadeira projectada pela designer gráfica Rita Oliveira Paulo. “É sobretudo interessante esta ideia de versatilidade. Achei que seria importante usar o meu cunho profissional na minha peça”, realça a aluna. A designer bebeu da série “Pipes” concebida por Nuno Soares para transformar um cartaz publicitário de rua num confortável assento. “Usei um banner para fazer a parte de sentar de uma cadeira. É um poster, um objecto, que já foi criado e agora é outra coisa. O PVC tem muita resistência e pode servir para uma cadeira”, descreve.
Rita Oliveira Paulo já teve uma loja de mobiliário, onde dava mais corpo à faceta de arquitecta de interiores. O tempo continua a não ser dado como perdido quando frequenta este tipo de acções de formação. “Gosto de tudo o que esteja ligado ao desenho. Gosto de explorar este tipo de conhecimentos. Posso perceber como os outros fazem e pedir como quero que façam”, indica.
Das aulas com Nuno Soares destaca o conceito de multifuncional e a recuperação dos materiais urbanos. “Em Macau é muito importante desenvolver objectos que não se fiquem por uma só função. As casas são pequenas, é mais prático se as peças forem adaptáveis”, entende. O piscar de olho à utilidade da reciclagem dos materiais, continua, é logo feito no nome que escolheu para a peça: “Banner Chair”, também o baptismo “revela o que objecto é”. A cadeira propõe ainda uma rotatividade do padrão. O cartaz (o assento) pode ser rodado pelos tubos de metal e dar à cadeira de sala de estar um efeito de “loop”.
A designer Filipa Soares, a segunda metade do conceito “constrAction”, também anda pela oficina a dar apoio aos formandos. “Há novas abordagens. Interpretaram a ideia, e fizerem trabalhos muito giros e dentro desta filosofia”, avalia. O workshop tem servido para afastar o “fantasma de que não se consegue fazer design” e abriu novos horizontes aos alunos. “Houve uma interacção com a cidade. Passaram a olhar, neste caso, para os materiais de construção civil e a descobrir uma peça sem ter formação. Foram criativos”. A potencialidade do projecto despertou ainda para a leitura do mercado de design. “Vão estar mais atentos ao desenho, aos moldes, aos materiais, quando comprarem um móvel, ainda que seja no Ikea”, brinca.