21.4.08

Processo de ingresso dos funcionários públicos na administração portuguesa
200 iludidos e desiludidos

O ingresso na função pública portuguesa, iniciado há 10 anos, teve de tudo, mas sobretudo ilusões e muitas desilusões. Foram mil integrados, pelo menos 200 desiludidos

João Paulo Meneses
putaoya@hotmail.com

Macau vivia há dez anos uma das mais fases mais agitadas da parte final da transição; o governo da República acabara de publicar um decreto que reabria um processo iniciado em 1993 e que permitiria a cerca de mil trabalhadores de Macau serem integrados na administração pública portuguesa.
Não se pense, contudo, que este que ficou conhecido como o processo de ingresso (ou simplesmente ‘ingresso’) é arqueologia ou que temos de fazer história para perceber o que é que se passou.
Não só haverá, ainda, em Macau algumas dezenas de pessoas que se sentiram vítimas da forma como foi redigido o decreto 89-F/89, de 13 de Abril, como só no ano passado os tribunais portugueses, nomeadamente os de última instância, encerraram definitivamente as dezenas de processos de recurso abertos entretanto.
Melhor estudado, este longo caso (e tudo o que lhe está associado) talvez dê para compreender melhor – pelo menos simbolicamente – o estado da política e da justiça em Portugal: houve decisões do governo, favoráveis aos reclamantes, que nunca foram cumpridas, promessas de campanha rapidamente esquecidas quando se chegou ao poder e, até, duas decisões aparentemente contraditórias, com origem no mesmo tribunal, nada mais nada menos do que o Supremo Tribunal Administrativo.

A lei de Macau e a lei de Lisboa

Para os mais recentes – ou esquecidos – talvez valha a pena recordar o contexto em que tudo decorreu: depois de em 1993 ter aberto um processo de ingresso dos trabalhadores da administração pública de Macau na função pública portuguesa, o governo socialista decidiu reabrir a questão em 1998, a pedido do governo do Território, como forma de acautelar os direitos dos trabalhadores que tinham ficado para a fase final da transição e não possuíam ligação efectiva à administração pública.
O decreto do ingresso punha algumas condições para se efectivar esse ingresso (a nacionalidade portuguesa e o domínio da língua), mas acabou por ser uma das condições não previstas directamente na lei a causar não só mais instabilidade mas também a originar mais processos judiciais: os 65 anos como limite de idade.
Se o Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau estabelece como aposentação os 65 anos, a lei em vigor na altura em Portugal falava em 70 anos. E, mais do que uma data, apontava para a necessidade do trabalhador possuir cinco anos de descontos para poder requerer a aposentação.
O que se passou foi que Lisboa entendeu que se deveria aplicar a lei de Macau e Macau, nomeadamente ao admitir na lista pessoas com mais de 65 anos, a lei de Lisboa. Indiscutivelmente, e depois de se consultar dezenas de documentos sobre a matéria (desde os decretos, aos despachos, passando por requerimentos e sentenças judiciais), é possível garantir que a interpretação de Macau foi sempre muito mais generosa do que a de Lisboa…

A necessidade de estabelecer
um prazo-limite


Houve outros pontos de discórdia – que levaram um grupo de residentes em Macau, primeiro ajudados pelo PSD local, depois organizados por si próprios a tentar durante vários anos a reabertura do processo – como a necessidade de abranger todos os trabalhadores nas condições previstas na lei em funções até 19 de Dezembro de 1999 e não a 1 de Março de 1998 ou a pressão para incluir pessoas que foram excluídas porque as instituições em que trabalhavam não se enquadravam nos casos previstos na lei. Mas nenhum tão polémico quanto a data de aposentação: basicamente porque a lei de 13 de Abril era omissa e no entender de muitos, sendo uma lei da República Portuguesa, deveria remeter para o universo legislativo português.
Relativamente à necessidade de estabelecer um prazo-limite no caso anterior à própria data do decreto, o governo sempre explicou que, por um lado, se pretendia evitar casos de ‘caça ao emprego’ (de pessoas que em cima do momento viajariam para Macau e conseguiriam assim um emprego em Portugal, alguns meses depois) e que, aqueles que aceitaram trabalhar em Macau até ao final, não tendo vínculo na República, já sabiam com o que é que contavam e não se poderia falar em expectativas defraudadas.
Já aqueles casos de trabalhadores com vínculo precário que foram excluídos porque os seus vínculos ou locais de trabalho não se enquadravam nos pressupostos da lei (o regime de contrato de tarefa ou de prestação de serviços), embora a lei fosse clara sobre as exclusões, podia ler-se num requerimento enviado ao Provedor de Justiça, por exemplo, que eram formas de enganar o Tribunal de Contas de Macau…
Muito mais pontos foram questionados, mas estes acabaram por ser os mais polémicos.

Um despacho que não teve seguimento

O contexto político em que tudo decorreu também é altamente relevante para perceber o que se passou: as dúvidas e as reclamações começam logo a seguir à publicação do decreto de 13 de Abril de 1998 pelo o secretário de Estado da Administração Pública Alexandre Rosa (que vivera e trabalhara em Macau, no tempo de Carlos Melancia).
O tempo era pouco, os potenciais interessados chegariam aos 1500.
Pelo menos 200 pessoas não conseguiram o seu objectivo, o que motivou muitas queixas – ainda durante a administração portuguesa e com Alexandre Rosa na Secretaria de Estado.
Em Março de 2001, em face das inúmeras reclamações administrativas, e do próprio pedido de reabertura do processo, Alexandre Rosa emite um despacho em que dá razão a alguns reclamantes, nomeadamente quanto à questão da idade, e em que manda a Direcção Geral da Administração Pública avançar nesse sentido.
Acontece que meia dúzia de meses depois, o governo de António Guterres demite-se, houve eleições e Durão Barroso foi eleito primeiro-ministro – sendo que uma das promessas era a contenção orçamental por via do aperto nas despesas com o funcionalismo público (Bagão Félix o ministro).
O leitor estará a pensar, nesta altura, que estariam reunidas as condições para que o processo morresse exactamente aí. Mas o caso é bem mais curioso. E confuso.

PSD promete e esquece-se

Ainda o PS era governo e Alexandre Rosa o secretário de Estado e no parlamento três deputados do PSD, liderados por Manuela Aguiar mas com o patrocínio do então secretário-geral José Luis Arnaut, entregam (Novembro de 2000) um requerimento em que pedem ao governo – entre outras coisas - «o direito ao ingresso, a todo o tempo, na Administração Pública da República Portuguesa a todo o pessoal civil de nacionalidade portuguesa, ou outra, (…) desde que se encontrassem a trabalhar na Administração Pública de Macau – incluindo pessoas colectivas de utilidade pública administrativa e serviços públicos personalizados – em 19 de Dezembro de 1999 (quer tenha ou não continuado ao serviço da Administração da RAEM) assim como os que se tenham desvinculado antes dessa data (inclusive, antes de 1 de Março de 1998), independentemente, em qualquer dos casos, da natureza do vínculo».
Ou seja, e de uma forma mais simples, o PSD acolhia os argumentos dos reclamantes – então liderados pelo PSD de Macau – e pedia a reabertura do processo, que o governo sempre recusara.
O despacho de Alexandre Rosa como que é a resposta a este requerimento, embora – como se percebe – numa versão muito mais reduzida.
Durante a campanha eleitoral, a cabeça da lista pelo círculo fora da Europa, Manuela Aguiar, transforma o teor do requerimento em promessa eleitoral. O PSD, coligado com o CDS, ganha e forma governo.

As desculpas de Manuela Aguiar
e o esquecimento de Arnaut

Nos primeiros tempos, por força da persistência de Manuela Aguiar, e apesar dos repetidos anúncios de contenção nas admissões da administração pública, pareceu haver esperança. O PONTO FINAL, em Março de 2002, e com base em informações do gabinete de José Luis Arnaut (entretanto ministro), chega a noticiar que o processo seria reaberto.
A incerteza dura cerca de um ano. De um lado o grupo de reclamantes tentando todas as vias possíveis, ajudados por Manuela Aguiar. Do outro Bagão Félix e a secretária de Estado Suzana Toscano. Em Maio de 2003, quando vai ao Parlamento reunir-se com a subcomissão das comunidades (que aprovara por unanimidade um novo requerimento no sentido da reabertura do processo), a secretária de Estado como que mata definitivamente o caso (embora nunca tivesse havido uma afirmação definitiva sobre o assunto… até hoje!).
Entre os muitos pormenores que a história deste caso retém há dois que merecem um especial destaque:
Em Outubro de 2003, e depois de algumas peripécias relacionadas com a vinda do representante português à abertura do Fórum Económico na RAEM, José Luis Arnaut não só não assumiu a recusa em reabrir o processo como chegou a dizer que não se lembrava da promessa eleitoral.
Além daqueles que viram as suas candidaturas recusadas, o ingresso fez mais uma vítima, neste caso política: Manuela Aguiar, que chegou a tratar do assunto com Durão Barroso, por exemplo, nunca perdoou a falta de solidariedade do seu partido. Pediu desculpas aos eleitores de Macau e afastou-se da política até hoje.

Dois acórdãos contraditórios

A última vez que se falou publicamente sobre o assunto foi em 2005 quando a comissão de interessados na reabertura deu a José Cesário, na altura apenas deputado, depois de ter sido secretário de Estado das Comunidades, um projecto de diploma que resolveria as reivindicações de cerca de uma centena de interessados. José Cesário – que na altura já sabia que não havia qualquer hipótese de voltar ao assunto – foi incapaz de o dizer, apenas que não seria fácil…
Quando o PS voltou ao governo, com José Sócrates, a questão como que foi abandonada, sendo que até 2005 a Secretaria de Estado da Administração Pública foi indeferindo os vários requerimentos que lhe chegaram, nomeadamente sobre a questão dos 65 anos.
Aos mais persistentes (e que tinham essa possibilidade) restou a via judicial.
Vários casos chegaram ao Supremo Tribunal Administrativo, que apenas há um ano se viu livre da polémica.
Tanto quanto o PONTO FINAL apurou todos os casos de pedido de ingresso foram recusados. E se houve decisões favoráveis pelo caminho, em instâncias intermédias, registaram-se sempre recursos, até que o Supremo os indeferiu finalmente.
Há contudo um caso que merece ser contado: determinada subsecção do Supremo Tribunal Administrativo, em Junho de 2006, deu razão a uma reclamação (relacionada com o limite dos 65 anos), quando, num caso semelhante, uma subsecção diferente do Supremo Tribunal Administrativo pronunciara-se de forma diferente, sendo que essa decisão já transitara em julgado (Maio de 2005). Foi preciso recorrer ao Pleno da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo para aclarar a situação. Os juízes acabaram por encontrar na hermenêutica da lei a solução, explicando que os dois acórdãos não tratavam «da mesma questão fundamental de direito». E novamente o recurso da requerente foi rejeitado (trata-se do processo nº 01185/05, disponível na íntegra na Internet, tal como outros).

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Datas relevantes

1993 – é aberto o processo de integração na administração pública portuguesa
1998 (13 de Abril) – começa o processo de ingresso
2000 (Novembro) – PSD apresenta requerimento a pedir reabertura
2001 – Alexandre Rosa, secretário de Estado da Administração Pública, pede a reanálise de vários casos
2002 (Maio) – o PONTO FINAL diz que José Luis Arnaut vai desbloquear o caso
2002 – é entregue um abaixo-assinado ao Provedor de Justiça com 138 assinaturas; nesse mesmo ano, o Provedor-adjunto, Macedo de Almeida, responde, negando razão;
2002 – Manuela Aguiar entrega requerimento no Parlamento, depois de ter falado com Durão Barroso;
2003 (Maio) – A secretária de Estado da Administração Pública, Suzana Toscano, reúne na Assembleia da República e não assume a reabertura
2003 – O secretário de Estado das Comunidades, José Cesário, diz que o processo não está fechado («em análise»)
2003 (Outubro) – José Luis Arnault está em Macau mas não se lembra da promessa eleitoral
2005 – Comissão de interessados entrega ao deputado do PSD José Cesário uma proposta de lei para desbloquear o assunto; Cesário diz em Macau que o caso não está fechado, mas que é difícil
2006 – Três últimas decisões do Supremo Tribunal de Justiça (indeferimentos)
2007 – Decisão do Supremo Tribunal Administrativo sobre acórdãos (aparentemente) contraditórios

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Os números

Não há números certos e os próprios dinamizadores do processo reconheciam isso, ao mesmo tempo que apontavam para um valor a rondar os 150 potenciais interessados na reabertura. No requerimento enviado ao Provedor há 138 assinaturas.
Ainda assim sabe-se que foram integrados 1002 trabalhadores sem vínculo com origem em Macau e foram 1200 os que pediram, de acordo com dados da Direcção Geral da Administração Pública fornecidos em 2000 ao PONTO FINAL.
Para a realização deste trabalho voltámos a pedir números, através do Ministério das Finanças, mas uma semana não foi suficiente para a resposta chegar.
Em 2000, dos 1002 integrados já estavam a trabalhar na função pública portuguesa 900 e os restantes encontravam-se à espera de colocação.

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