15.6.08

Família Senna Fernandes
Renascença Macaense

Depois de oito anos de governação chinesa, os Macaenses perderam muitos medos, em especial aquele que tinha a ver com a sua propria existência. Em 2008, a comunidade parece mais forte que nunca, mantendo as suas tradições e ressuscitando o Patuá. A família Senna Fernandes continua a dar sentido ao que é ser Macaense na pós-transição

Nuno Mendonça

Estar em Macau e não ter ouvido falar de Henrique de Senna Fernandes, é como o ditado de Roma e o Papa. Henrique é advogado, mas acima de tudo o escritor que eternizou o Macau de duas comunidades que aprenderam a viver juntas, com histórias de amor proibidos e casamentos mais ou menos felizes.
O filho, Miguel, é advogado como o pai, foi deputado da Assembleia legislativa nos últimos anos da administração portuguesa e defensor acérrimo da cultura macaense, que divulga na trupe teatral Doci Papiaçam di Macau, essa deliciosa revista à macaense, onde se faz a critica social da terra.
Os dois são orgulhosos Filhos da Terra, o equivalente local de nobreza. Estou seguro que Henrique e Miguel serão os primeiros a criticar o exagero, mas o facto é que a família Senna Fernandes vive em Macau há pelo menos 250 anos.
Quando me encontrei com Miguel no seu escritório da Praia Grande, quis saber antes de mais o que é ser macaense em 2008.
Há claro a mistura de sangue chinês e português (e goês, africano, japonês, malaio, indonésio e timorense, pelo menos).
“Portanto somos mestiços, e quem não o é neste mundo?” pergunta Senna Fernandes filho.
Se as definições antropológica e etnológica perderam de alguma forma sentido, o que é então um Macaense?
Miguel parte para uma explicação cultural: “São necessárias duas coisas: a ligação da pessoa a Macau, e é isso que explica que mesmo um macaense que não tenha nascido aqui, se sinta macaense porque os seus antepassados são macaenses, mas acima de tudo a referência da terra que é Macau. A segunda característica, que é mais discutível, é a ligação a Portugal. Não é uma questão jurídica porque a questão da nacionalidade está ultrapassada. É a ideia de Portugalidade.”
E Miguel explica o impacto da sua definição: "Hoje o que vemos num macaense, de um ponto de vista chinês, é um koi-chái, um filho de um bárbaro que não fala a língua dos bárbaros, mas sim o cantonense,” (risos). “Isto é anedótico,” continua, “mas hoje é de facto muito útil. Para um amante do português, as gerações de macaenses que vimos aqui são desastrosas, porque o português já não tem qualquer tipo de atracção para o macaense. Mas apesar disto, é um indivíduo com uma forte ligação à sua terra e determinado a usar o seu nome português. É isso que é um macaense,” conclui.
Por isso mesmo e em 2008, o guarda-chuva macaense é suficientemente grande para abrigar não-falantes do português, chineses que aprenderam português e são católicos devotos e até portugueses sem qualquer antepassado chinês que vivem aqui há muitos anos e de alguma forma assimilaram as tradições macaenses. O importante, Miguel argumenta, é a aceitação pela comunidade macaense.
É uma situação extraordinária, só possível pela continuidade da centenária tolerância chinesa. Comunidades multiculturais e mestiças em diversas partes do mundo têm por vezes um destino trágico. Vistas pela maioria da população como aliados do antigo poder colonial, são condenadas a uma crise de identidade, não sendo aceites por nenhuma das populações dominantes.
É um facto que os macaenses foram durante séculos os intermediários entre os governantes portugueses e a maioria chinesa. Ora quando Lisboa e Pequim assinaram a Declaração Conjunta em 1987, muitos temeram que um estilo de vida centenário tinha os dias contados.
“No princípio dos anos 90,” conta Miguel, “a questão mais frequente que os chineses levantavam era: você é Chan Chou (ligado `a China) ou Chan Pou (próximo de Portugal)? Esta dualidade era predominante, até que às tantas eu disse: ‘nem somos um nem somos outro, somos Chan Ou, ou seja somos de Macau, somos macaenses, não temos de escolher.”

Os papéis da China
e de Portugal depois de 99


O certo é que nenhum dos medos dos macaenses se materializaram. “Hoje penso que o nosso modo de vida é mais forte e que os chineses nos compreendem,” defende Senna Fernandes.
Esta relação é em parte justificada pelo bom entendimento com Edmundo Ho que sempre teve a comunidade portuguesa (macaense e expatriada) em alta estima, mas também pelo facto de Pequim ter compreendido que nada tem a temer dos macaenses.
Lamentavelmente Miguel Senna Fernandes não pode dizer o mesmo de Portugal no pós 99. Há um ressentimento latente naquilo a que chama “a falta de estratégia para Macau.”
“Sentimos que fomos abandonados por Portugal e esse é um sentimento geral. O desígnio nacional que Macau era acabou a 19 de Dezembro de 1999,” desabafa Senna Fernandes.
E para ele, a Escola portuguesa representa a materialização dessa falta de visão. “A Escola Portuguesa, no modelo que tem hoje em dia, está a perder cada vez mais alunos, porque as pessoas procuram outras alternativas nas escolas internacionais,” critica Senna Fernandes.
“A Escola até tem excelentes métodos de ensino. Os alunos estão muito bem preparados quando saem para estudar noutros países, Portugal, Austrália ou outros. Mas ninguém sabe disso. Portugal está muito longe de tudo isto. “, adianta.
Mas é para a Fundação Oriente que guarda as palavras mais duras: “A Fundação Oriente pode estar de muito boa fé nas coisas que faz (referindo-se ao Museu do Oriente), mas sou muito crítico em relação a ela. Eu acho que ao demitir-se das suas responsabilidades da Escola Portuguesa foi a coisa mais vil que podia ter feito. Era um compromisso absolutamente sério, mas disse – eu já dei aquilo que podia e agora vou-me embora! – não é assim que se fazem as coisas!,” diz Senna Fernandes.
O modelo que Miguel defende é pois o de uma escola internacional, com ensino do Inglês e Mandarim, sem esquecer uma forte componente do Português. Isso poderia inclusive atrair uma nova geração de Chineses, interessados em aprender português, agora que Pequim tem um interesse estratégico nos países africanos de língua portuguesa e no Brasil. Não foi `a toa que Macau foi escolhido para sede do Fórum de Cooperação e Comércio entre a China e os países de expressão portuguesa.
Mas pode Macau tornar-se num centro de difusão do português na Asia?
Senna Fernandes não acredita na possibilidade se depender de Portugal. Aceita que os interesses de Pequim podem ser puramente económicos, mas defende que deviam ser usados a favor de Macau.
“O que é extraordinário é que aqueles que estão a defender a lingua portuguesa aqui em Macau, são os chineses,” diz Senna Fernandes.

Macau Hoje e no Futuro

Apesar dos pesares, Miguel Senna Fernandes está optimista quanto ao futuro dos macaenses e espera que o novo chefe do exectivo que, espera, não seja um empresário, possa continuar a boa relação com os portugueses. Nome `a vista? “Não sei quem seria óptimo. Fala-se muito de Hoi Heng Seng. Parece uma pessoa sensata, discreta, mas não o conheço na sua relação com macaenses, temos de esperar para ver” diz Senna Fernandes.
Quanto ao seu regresso à politica, o antigo deputado diz quer não está no seu horizonte imediato, até porque a passagem pela assembleia legislativa “não foi para mim uma experiência do outro mundo.” “Eu estou muito bem cá fora,” conclui, apesar de ir dizendo que nunca pode dizer nunca.
Quanto à situação actual de Macau, olha-a com alguma apreensão, com a ênfase dada aos casinos e hotéis e o negligenciar de áreas como a saúde, transportes e educação. Mas para isso, a sociedade tem de mudar.
“Macau não tem economia,” defende Senna Fernandes, “Macau tem empresários públicos, merceeiros e casinos. Não há o in-between, infelizmente. Seria realmente necessário criar uma certa consciência de classe media forte em Macau.”
Por isso acredita que ainda é cedo para a população poder avançar para eleições directas, por um lado por falta de educação cívica e uma prática activa de cidadania.
“Um dia vai acabar por ser tudo directo (referindo-se às eleições directas), mas agora não estou a ver Macau preparado para isto,” conclui.
E uma associação política macaense faz sentido?
“Na dita conjuntura, não estou a ver condições em Macau para criar uma associação de cariz politico. Eu acho que nós lucraríamos muito mais com associações de cariz cultural. Muita gente diz que não reivindicamos mais e não somos interventivos. Porque é que uma associação cultural não pode ser interventiva? Aquilo que se faz não tem impacto politico? Claro que tem,” defende Miguel Senna Fernandes.

O Renascimento do Patuá

O Patuá tem sido a arma eleita para uma intervenção cultural forte por parte dos macaenses. O sucesso dos últimos anos que culminou com a candidatura a património intangível da humanidade junto da UNESCO é ainda mais surpreendente se se pensar que foi condenado à extinção pelo seu próprio povo durante o século passado. “Um macaense tinha vergonha de falar Patuá, da mesma maneira que tinha vergonha de se assumir como macaense,” lembra Senna Fernandes. “Quando era pequeno, partilhei da mesma vergonha porque na altura pensava-se que falar Patuá era falar mau português. O português era a referencia, a norma, a língua de gente. Falar patuá era ser menos que gente e ninguém queria isso,” salienta.
Agora que a riqueza vocabular e cultural desta lingua foi finalmente resgatada, o reconhecimento pela UNESCO pode dar-lhe o sopro de vida definitivo de que precisa. “Unificaria muitos macaenses espalhados pelo mundo. E para a China, é importante ter uma língua multi-secular de Macau. É uma marca de tolerância que a prestigia,” argumenta Senna Fernandes.
Em Julho, Miguel vai liderar um workshop de Patuá, que entre outros objectivos pretende fazer o levantamento de mais palavras e expressões do patuá. Como outras línguas, o patuá muda de acordo com as latitudes do mundo por onde os macaenses se espalharam.
O patuá de Macau difere um pouco daquele falado na Califórnia ou na Austrália. Miguel acredita que, à semelhança do português, terá de haver também de haver um acordo ortográfico no patuá. Por isso lança o repto aos macaenses espalhados pelo mundo: “ensinem-nos o que sabem, corrijam-nos, não matem a vossa cultura levando segredos para a tumba.”


*****


Henrique de Senna Fernandes
O filho varão de Macau

Nuno Mendonça

Um encontro com Henrique de Senna Fernandes é como uma visita a um avô. Um avô português e caloroso cujo rosto reflecte a história de família e cujas palavras lembram aquela língua delicada e polida de outros tempos que está em acelerada via de extinção.
Senna Fernandes é a personificação da Macau do século XX, com as suas vitórias e tragédias, medos e celebrações. Não que Henrique pareça particularmente envelhecido nos seus 84 anos, aparte de um problema de voz. O que possui é aquela particularidade rara de quem transcende a vida ainda vivo, prova de que a viveu ao máximo.
Filho de uma ilustre família, tece uma vida próspera e confortável com os seus 10 irmãos até ao rebentamento da Segunda Guerra Mundial na Ásia, quando o seu pai perdeu a fortuna em Hong Kong e a família teve de procurar abrigo em Macau, fugindo ao avanço japonês.
“Passámos por um período de miséria terrível, sofremos descriminação, mas o meu pai era muito orgulhoso. A minha mãe era uma das mulheres mais lindas de Macau e muito corajosa. Sou muito honrado por ter sido seu filho. Toda essa experiência me mudou muito,” lembra Senna Fernandes.
Essa vida no limite, deu-lhe contudo a coragem para continuar e possivelmente fortaleceu o seu talento para a escrita. É graças a ele que a Macau dos anos 30, 40 e 50 foi salva através de livros como a Trança Feiticeira (passado para a tela), “Nam Van” e “Mong-Há”.
O amor é o tema recorrente, com frequência o amor entre uma rapariga chinesa e um rapaz macaense. De alguma forma, há referências autobiográficas nos seus livros. Também ele, o orgulho de uma família tradicional macaense amou e casou com uma bela mulher chinesa, desafiando as convenções de uma cidade pequena e conservadora.
“Sentimos descriminação, não o faziam à nossa frente, era mais subtil. A minha mulher sofreu com isso, mas ela era muito orgulhosa e recusou sempre ir às recepções oficiais e jantares na casa do governador, onde ninguém falava chinês. Mas tudo isso passou, eu amei-a muito e o amor tudo vence, “ reflecte o escritor.
Estudou direito em Coimbra, tornou-se advogado, regressou e montou escritório, apenas para conseguir independência financeira. A sua verdadeira vocação foi sempre escrever e ensinar.
Sou adorado pelos meus antigos alunos. Dei aulas de história no liceu e na escola comercial durante trinta anos,” diz com orgulho.
Durante todos esses anos, sempre teve (e ainda tem) orgulho das suas raízes portuguesas. “A minha pátria é Portugal, a minha mátria é Macau,” gosta de dizer.
Mas curiosamente nestes anos mais tardios, Henrique de Senna Fernandes parece questionar mais os seus afectos pela pátria.
“A educação que tivemos era demasiado portuguesa e completamente errada. Acreditávamos que Portugal era o melhor do mundo, quando na verdade tinha tantos defeitos como qualquer outro país, mas a Europa era tudo para nós,” relembra.
Lamenta a divisão entre chineses e portugueses, muitas vezes exacerbada pelo sentimento de superioridade de alguns oficiais lusos.
“Portavam-se como uns reis e conquistadores e eram terrivelmente insultuosos e arrogantes,” diz Senna Fernandes, “ e claro que não tinham qualquer tipo de preparação. Durante o 1,2,3 (referindo-se aos incidentes em Macau da Revolução Cultural), não tinham a mínima ideia do que estava acontecer nas ruas e mantiveram a insolência de sempre,” conclui.
Felizmente os tempos e as administrações portuguesas evoluíram. Mas o homem que disse um dia que o ver o arrear da bandeira a 19 de Dezembro de 1999 era o “momento mais infeliz da vida”, já não está tão seguro desta afirmação.
“A nova administração foi generosa e reconheceu à nossa comunidade a dignidade que merece,” salienta.
As 84 anos, o homem mais condecorado de Macau tem contudo algumas mágoas em especial o não ter escrito mais depois da morte da mulher que muito o desgostou. E o mais triste é a falta de um herdeiro literário.
Segundo Senna Fernandes, “não há ambiente para escrever aqui, os chineses são demasiado práticos e mesmo os macaenses preferem outros divertimentos.” E está Henrique de Senna Fernades em paz?
“Estou mais ou menos em paz, tirando alguns pecadilhos.”

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