18.8.08

A «Questão de Taiwan» (finalmente) explicada

Luís Cunha viveu 14 anos em Macau; este é o seu sexto livro. O primeiro que explica, em português e por um português, a «Questão de Taiwan»

João Paulo Meneses
putaoya@hotmail.com

Se não é o primeiro, é um dos primeiros livros escritos em português, por um português, sobre a complexa realidade de Taiwan. O seu autor é alguém que Macau bem conhece, ou não tivesse vivido por cá entre 1985 e 1999. 14 anos em que foi jornalista (no Comércio de Macau), trabalhou no GCS e escreveu livros. Cinco. Sobre Macau: um sobre o Leal Senado, outro sobre o aeroporto de Macau, dois sobre o Instituto dos Desportos/Estádio de Macau e um outro sobre a publicidade em Macau.
Agora chegou «China, cooperação e conflito na questão de Taiwan», que o autor quer ver à venda também em Macau.
O seu autor é Luís Cunha, 46 anos, actualmente no Ministério dos Negócios Estrangeiros, onde é chefe de Divisão de Informação no Gabinete de Informação e Imprensa.
Em paralelo mantém actividade académica, com um mestrado em Relações Internacionais, que poderá evoluir em breve para a conclusão do doutoramento.
A propósito do novo livro, do seu trabalho e da sua passagem por Macau, Luís Cunha conversou com o PONTO FINAL.

Uma trilogia de transições

PONTO FINAL – Este livro procura suprir uma carência em termos de publicações portuguesas?
Luís Cunha – Sim. O panorama editorial português carece ainda de títulos, académicos ou outros, que abordem com alguma profundidade as questões da Ásia-Pacífico. O fenómeno da ascensão geopolítica da China, por exemplo, é profusamente estudado e analisado no mundo anglo-saxónico. Tanto quanto sei, o meu livro é o primeiro editado em Portugal a debruçar-se sobre a complexa «Questão de Taiwan».

PF – Como surgiu em concreto?
LC – A ideia para o estudo da «Questão de Taiwan» surgiu logo no princípio do meu mestrado em Relações Internacionais no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSPS). Na realidade, quando regressei a Portugal, após 14 anos de permanência em Macau, durante os quais tive a oportunidade de acompanhar os processos históricos das transições políticas em Hong Kong e Macau, apercebi-me que desconhecia grande parte da complexa história contemporânea de Taiwan e o que ela representa em termos geopolíticos. A célebre fórmula de Deng Xiaoping, «um país, dois sistemas», foi, afinal de contas, formulada a pensar em Taiwan. Jiang Zemin fez questão de relembrar isso mesmo na cerimónia de transição de poderes administrativos em Macau, no dia 19 de Dezembro de 1999.

PF – Mas porquê este especial interesse em Taiwan?
LC – É, para mim, uma espécie de trilogia pessoal. Depois de acompanhar, in loco, as transições de Hong Kong e Macau, a «Questão de Taiwan» era uma espécie de «missing link». O ângulo que ainda me faltava nesta importante triangulação.

Orientação de Vasconcelos Saldanha

PF – Esta faceta académica de que falas é para continuar?
LC – Este projecto teve origem num desafio académico a que pretendo dar continuidade através do doutoramento (em curso), igualmente em Relações Internacionais (ISCSP), que versará sobre a política externa da República Popular da China, designadamente a sua cultura estratégica e «soft-power». O meu orientador é o mesmo do mestrado, o Prof. Doutor António Vasconcelos Saldanha (ISCSP), antigo Presidente do IPOR.

PF – Há ensinamentos que Taiwan pode receber do resto do mundo (de Macau e Hong Kong, por exemplo), mas também dar?
LC – A «Questão de Taiwan», herdada da guerra civil chinesa, é sui generis a vários títulos. Essa foi, aliás, a minha interrogação inicial: como pode um país de facto, mas não de jure, com 23 milhões de habitantes, um governo próprio e um território demarcado, sobreviver no mundo globalizado, apesar de ser apenas reconhecido por pouco mais de 20 nações, a maioria sem expressão a nível internacional? É bom não esquecer, neste particular, o importante papel que, historicamente, os EUA desempenharam – e desempenham – na questão de Taiwan. Sem a intervenção de Washington e, designadamente, os interesses geoestratégicos associados à guerra da Coreia/Guerra fria, Taiwan não teria sobrevivido, com toda a probabilidade, enquanto entidade política autónoma de facto.

«Dependência de facto»

PF – Achas que Taiwan alguma vez voltará a ser uma província chinesa, ainda que especial?
LC – A chave para o desfecho da complexa «Questão de Taiwan» está depositada em Pequim (com uma cópia de segurança em Washington...). A vertiginosa ascensão geoestratégica da China em todos os palcos mundiais tem retirado visibilidade e espaço de manobra político às pretensões do governo em Taipé. Não seria surpreendente, por exemplo, que a médio prazo Taiwan perdesse o seu único aliado na Europa: o Estado da Santa Sé. Há já sérios indicadores nesse sentido, o que significaria um duro golpe para a diplomacia taiwanesa. Apesar da população de Taiwan defender o statu quo, a enorme dependência económica de Taiwan face à China (um milhão de trabalhadores de Taiwan a residirem na China, 40.000 empresas de Taiwan deslocadas, etc. ...) vulnerabiliza dramaticamente as pretensões políticas de Taipé. Passou-se, de facto, de uma independência de facto, para uma dependência de facto. Com as implicações políticas que isso pode acarretar. Também não devem ser esquecidos os fortes laços etno-culturais que unem as duas margens do Estreito de Taiwan. A integração económica entre os dois lados é, cada vez mais, uma realidade. O recente regresso ao poder do partido nacionalista (Kuominang) e o início das ligações directas aéreas entre as duas margens do Estreito de Taiwan terão, certamente, consequências não só económicas, mas sobretudo sociais e políticas muito significativas. E depois há um elo comum aos dois lados: a herança político-idológica (ainda que nebulosa) de Sun Yat-sen, visto por Pequim e Taipé como o pai da China moderna. Esse é um elo comum que pode vir a desempenhar um papel vital na aproximação entre as duas partes, tendo em vista uma solução negociada para a Questão de Taiwan. No programa nacionalista patrocinado por Pequim, a reunificação com Taiwan é, mais que uma questão territorial, uma questão de honra para o regime.

Separar a actividade profissional

PF – Até que ponto este livro está ligado à tua actividade profissional?
LC – Este livro não tem qualquer relação directa com a minha actividade profissional no MNE. Sou Chefe de Divisão de Informação no Gabinete de Informação e Imprensa do MNE. Ao concluir um mestrado em Relações Internacionais sobre uma questão asiática, a que estou agora a dar seguimento no doutoramento na mesma área, pretendo apenas realizar-se pessoalmente e, acima de tudo, enriquecer ainda mais as extraordinárias experiências vividas na Ásia e em Macau em particular.

PF – Dizes na introdução que são as tuas opiniões e que não reflectem as do MNE; pensas que as tuas opiniões podem ser polémicas num tema sempre polémico?
LC – Não quis dar azo a equívocos. Pelas razões expostas no ponto anterior, quis deixar bem claro que as minhas funções profissionais no MNE são completamente alheias às posições oficiais que o MNE ou o Governo Português tenha sobre a Questão de Taiwan. A minha obra é exclusivamente académica, e é nessa perspectiva que deve ser lida e interpretada. As posições oficiais portuguesas sobre a «Questão de Taiwan» - em consonância com as da UE – são sobejamente conhecidas e estão, de resto, reflectidas no livro.

PF – Admites que perpassa, da leitura da tua obra, algum tipo de simpatia pelas opções históricas de Taiwan?
LC – Como obra académica que é, a minha preocupação foi estudar, analisar e reflectir todas as posições dos diferentes protagonistas e actores sobre esta delicada questão. Os estados de alma não se coadunam com o rigor científico.

«Devo a Macau muito…»

PF – Quando deixaste Macau?
LC – Dois dias depois do histórico 19 de Dezembro de 1999. Após 14 anos de intensas vivências, profissionais e pessoais, em Macau. À semelhança de toda uma geração que por lá se fez gente, devo a Macau muito do que sou e do que aprendi. Até as minhas actuais aventuras académicas...

PF – Quando foi a ultima vez que lá estiveste? Com que ideia ficaste?
LC – Estive em Macau pela última vez em 2003. Antes disso em 2001, para preparar o lançamento de um livro da minha autoria. Desde então tenho seguido a evolução de Macau à distância. Não escondo que em 2003 senti algum desconforto pelas alterações urbanísticas em curso e também, naturalmente, pela drástica diminuição da comunidade portuguesa. A estratégia de desenvolvimento adoptada em Macau terá, inevitavelmente, alguns efeitos secundários, mas é inegável que o nível de vida da população permanece elevado.

PF – Algumas saudades do jornalismo?
LC – «Tricky question»... Sem dúvida, apesar de continuar ligado, como sempre, ao mundo da comunicação social.

PF – Os portugueses terão sido os primeiros ocidentais a chegar à Formosa. Há sinológos de matriz portuguesa que lamentam o desuso de Formosa. Equacionaste isso?
LC – Sim. Não usei a expressão «Formosa» (defendida por alguns «puristas») deliberadamente. Não se adequa à realidade no terreno, pois «Formosa» não só caiu em desuso naquela ilha, mas também no vocabulário de todos os estudiosos daquela região. Como se sabe, as autoridades da ilha adoptaram a expressão «Taiwan» (até, mais recentemente, nos respectivos passaportes) como forma de afirmação nacionalista e também para se distanciarem da velha «República da China», muitas vezes confundida por esse mundo fora com «República Popular da China».

CAIXA
Estudar até Sun Yat Sen

Na conversa com o PONTO FINAL, Luís Cunha deixa a interrogação-base que justifica este livro e tudo o que se possa saber e discutir sobre o caso de Taiwan: «como pode um país de facto, mas não de jure, com 23 milhões de habitantes, um governo próprio e um território demarcado, sobreviver no mundo globalizado, apesar de ser apenas reconhecido por pouco mais de 20 nações, a maioria sem expressão a nível internacional?».
Ao longo de cerca de 230 páginas (mais cerca de 100 com anexos), Luís Cunha convoca diversas fontes, chinesas e norte-americanas, nomeadamente, para deixar pistas que possam responder a essa interrogação. Mas também, e para muitos surpreendentemente, autores portugueses (o que reforça o valor da historiografia sinológica em português).
Cada vez mais, como o autor explica, a «Questão de Taiwan» deixou de ser um assunto chinês, até pela relação privilegiada da ilha com os Estados Unidos. Um caso único em todo o mundo, que Luís Cunha ajuda a compreender melhor. É certo dizê-lo: depois da leitura de «China, cooperação e conflito na questão de Taiwan» compreende-se muito melhor aquele que é, como o livro relata, um dos mais curiosos «case study» das actuais relações internacionais.
No prefácio a esta «esplêndida monografia», como lhe chama o presidente do Instituto Diplomático, Armando Marques Guedes lembra ainda «o timing da publicação», em véspera dos Jogos Olímpicos. E em cima das sucessivas crises políticas que marcam o relacionamento entre China e Taiwan (e vice-versa), uma – como se lê - «pax sinica» marcada por fortes laços comerciais mas, ainda, significativos antagonismos.
Até quando?
Luís Cunha antevê que, depois de diluídas as fronteiras comerciais, aquilo que designa como «verdadeira fronteira ideológica que opõe os dois lados antagónicos (…) poderá ter os dias contados». Inspirados naquele que abre as constituições da China e de Taiwan, o «pai fundador» Sun Yat Sen.

CUNHA, Luís (2008), China, cooperação e conflito na questão de Taiwan. Lisboa: Prefácio. 319 páginas. €19,95

JPM

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